Pensata

Alcino Leite Neto

25/10/2002

Um professor, o novo herói do cinema francês

"Ser e Ter" (Être et Avoir), documentário de Nicolas Philibert sobre uma pequena escola no interior da França, produzido com poucos recursos, virou um "cult" no país e está entre os dez filmes mais vistos nas últimas semanas pelos franceses. O público brasileiro precisa assistir este filme. Ele ressalta como poucos a importância da escola e do aprendizado e talvez seja a homenagem mais comovente já prestada pelo cinema aos professores.

O título se refere aos primeiros verbos que se aprende a conjugar: "être" (ser) e "avoir" (ter). Philibert acompanhou durante quase um ano o cotidiano dos alunos de uma pequena escola em Saint-Etienne-sur-Esson, nos grotões da França. É como se um brasileiro filmasse uma escola rural no interior de Goiás.

A escola tem uma única sala de aula, com 13 crianças de diferentes idades e níveis de aprendizado, do pré-escolar ao quarto ano, na classificação brasileira. Numa mesa, sentam-se os pequenos, na outra, os maiores. Um só professor leciona para todos os alunos.

As crianças moram no vilarejo onde fica a escola ou nas fazendas da redondeza. Toda manhã, um furgão passa para apanhá-las em suas casas, mesmo com a nevasca mais forte.

"Ser e Ter" começa, justamente, no inverno. O diretor filma demoradamente a paisagem gelada e o caminho difícil pelas estradas cobertas de neve. Não é um cenário de conto de fadas, mas um ambiente inóspito que é preciso atravessar para manter a regularidade das aulas.

Depois, filma a primavera e a chegada do verão. As estações seguem seu ciclo, ora a natureza é adversa, ora é deliciosa. Não interessa. As aulas continuam no mesmo ritmo, na mesma sala, às vezes no jardim, quando faz calor. Indiferentes às regras da natureza, todos estão concentrados no trabalho de transmissão da cultura, no esforço meticuloso da educação. Quando voltar o inverno, as crianças terão aprendido a ler.

"O que você veio fazer aqui?", pergunta o professor ao minúsculo Jojo, de 4 anos. "Vim trabalhar", responde o menino. A escola é um trabalho, o professor é um trabalhador, as crianças são pequenos trabalhadores. Elas estão na sala de aula para aprenderem, para se esforçarem, se disciplinarem, para se prepararem para a vida. É preciso dizer isso a elas. O professor diz, não as ilude nem as bajula. É a pedagogia do essencial _o resto é lero-lero.

O professor do filme, o cinquentão Georges Lopez, é desde já o herói das telas francesas na atual temporada cinematográfica. Sua dignidade, paciência, interesse, franqueza e persistência são impressionantes. Ele é o único personagem do filme que é entrevistado diretamente pelo diretor. De frente para a câmera, conta que ser professor era o seu projeto de vida e foi sua realização pessoal. Por intermédio de Lopez, o diretor celebra todos os professores.

Na pequena cidade, onde leciona há 20 anos, Lopez funciona não apenas como professor, mas ainda como psicólogo, "baby sitter" e assistente social. Seu método de ensino é heteróclito e sem apriorismos: mescla o tradicional e o moderno, a disciplina e o jogo, a doutrina e o diálogo.

Ele jamais abre mão de sua autoridade, obrigando os alunos a reconhecerem-na desde cedo, ao exigir que o chamem de "senhor". Mas pratica sua autoridade sem autoritarismo nem paternalismo. Está sempre no lugar do mestre: aquele que, quando surgem situações de conflito, vai incutir nas crianças as primeiríssimas racionalizações de princípios éticos, tentando fazê-las entender o sentido da amizade, do respeito ao outro, do trabalho, da decisão, da escolha.

Sem falar, claro, no aprendizado do alfabeto, das palavras, da escrita, da leitura, dos números, das contas... Todo um imenso esforço para os alunos e o professor, que Philibert acompanha detalhadamente, nas menores atividades, mas de maneira leve e bem-humorada, sensível à espontaneidade das crianças.

"Ser e Ter" é um documentário social, sobre uma coletividade, mas é também a respeito de vidas concretas, uma diferente da outra. A câmera (manipulada pelo próprio diretor) consegue definir cada aluno em sua singularidade, não deixando que a graça particular dos pequenos seja sufocada pela visão de conjunto.

No final, chegam as férias, as crianças menores aprenderam a ler, as maiores estão aptas a irem para o colégio na cidade vizinha, o professor despede de todos e os observa partir. A platéia aplaude, comovida com a lição fundamental deste filme: o árduo e encantador trabalho que é ensinar e aprender a ler e a viver.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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