Pensata

Alcino Leite Neto

01/11/2002

A vitória de Lula e a posse de Paulo Coelho

Na enxurrada de análises sobre a campanha presidencial, não sei se alguém arriscou comparar a chegada de Lula ao Planalto com a de Paulo Coelho à Academia Brasileira de Letras. Não é assunto primordial e parece coisa estapafúrdia, mas não deixa de ser curioso que as duas eleições tenham ocorrido uma perto da outra. Tomadas as proporções, elas fazem parte de um mesmo processo de mudança nas mentalidades brasileiras.

O primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL) foi um mulato bem instalado na vida, Machado de Assis, mas em seus 106 anos a entidade sempre fez questão de tomar boa distância do populacho e de seus gostos na hora de eleger os imortais. Muitos deles alcançaram grande popularidade no Brasil, como Coelho Neto, Olavo Bilac, Dias Gomes e sobretudo Jorge Amado. Mas não foi a popularidade que os impôs à Academia.

Fora isso, a ABL jamais seguiu muito à risca os critérios que deveriam nortear suas eleições, ou seja, a excelência literária ou ensaística dos candidatos. Ao longo da sua história, mais do que ser uma academia de letras, ela funcionou como uma espécie de clube de celebridades, provenientes de diferentes partes da elite nacional, que iam se imiscuindo aos escritores para adquirir o prestígio culminante, um assento entre os imortais letrados.

Erguida nos primeiros anos da República, em 1897, a Academia foi a culminância do beletrismo e do bacharelismo no Brasil. Num país majoritariamente analfabeto (até hoje), ler e escrever trazia (traz) um grau de distinção social formidável. Pertencer à ABL era (é) como atingir o ápice parnasiano da vida pública.

Ora, sem dúvida que Paulo Coelho foi em busca da mesma coisa _de uma alta distinção_ ao se candidatar à ABL, mas ele foi imposto à instituição por um conjunto de forças diferente das que formam a velha trama de prestígio beletrista capaz de garantir a eleição em boa parte das vezes.

Antes de ser um escritor de prestígio (mesmo que de prestígio discutível), Paulo Coelho foi um sucesso de vendas. A Academia teve que se curvar à evidência dos números, à objetividade do mercado, ao clamor dos milhares de leitores do mago. Evidentemente a sua presença na ABL, em si mesma, não traz nenhuma originalidade, se lembrarmos que Roberto Marinho e Ivo Pitanguy, gente pouco propensa à escrita literária, têm assento no templo de Machado de Assis.

Mas Paulo Coelho é um escritor, queiramos ou não, e no plano das coisas literárias todos os critérios inefáveis do juízo crítico acadêmico tiveram que ser postos de lado para recebê-lo por lá, entre eles o valor muito discutível de "literatura brasileira" _o autor de "O Alquimista" produz uma ficção mundializada, ele pouco se interessa pelo legado literário nacional e durante muito tempo foi classificado na categoria de "esotérico", o que era um modo de discriminá-lo no campo das letras.

Sendo assim, a Academia Brasileira de Letras, em seu cantinho, também foi espaço de uma pequena revolução ao decidir abrigar Paulo Coelho entre seus pares. Ao fazê-lo, ela viu, impotentemente, desmilinguir-se a aura de notabilidade literária que mal ou bem destacava os seus membros-escritores da horda infame _e que inclusive servia a muitos como compensação à pouca ou nula consagração crítica extra-muros ou à rala repercussão no gosto dos leitores. Ela rompeu, meio sem querer, por força dos fatos, com o século inteiro de privilégios que representou na nossa sociedade bacharelesca.

Ao eleger Paulo Coelho, é como se a ABL estivesse dizendo aos seus leitores que um escritor que eles gostam _e cuja única qualidade parece ser mesmo a sua popularidade_ pode ocupar as cadeiras imemoriais. É como se estivesse dizendo que todos os valores imponderáveis da aristocracia literária e crítica que a Academia representa podem deixar de se impor por um momento, de exercer o seu poder, para simplesmente confirmarem o juízo do leitorado comum de Paulo Coelho. É como se Academia estivesse afirmando que o leitor de Paulo Coelho tem razão, afinal, e portanto a ABL agora precisa assimilar o seu critério de valores.

A eleição de Paulo Coelho representa uma modernização e tanto da instituição da Academia Brasileira de Letras. Significa que ela espanou um pouco o seu mofo nobiliárquico e resolveu se aventurar nos novos tempos da cultura de massas. Não foi uma opção populista, como pode parecer, mas sem dúvida tem grande efeito popular e de marketing, por seu efeito de deselitização.

Por outro lado, a chegada de Paulo Coelho à ABL tirou o escritor subitamente do seu ostracismo institucional. Ele, que estava nas bordas desprezadas da cultura brasileira, passou agora para o meio oficial, fato confirmado ainda por sua visita a Fernando Henrique Cardoso neste mês. Não demorará até que seus livros comecem a ser reavaliados pelos críticos oficiosos, que hão de encontrar neles méritos hoje insuspeitados.

No plano das mentalidades brasileiras, tanto a vitória de Lula quanto a eleição de Paulo Coelho, a primeira de grande relevância histórica, a segunda apenas um episódio semi-mundano, representam rupturas em diferentes níveis com a longuíssima tradição de nosso singular sistema de castas sociais. Lula no Planalto significa o fim simbólico do país dos doutores. Paulo Coelho na ABL põe um epílogo na república dos beletristas _ao menos em sua forma clássica, acadêmica.


BELETRISMO PÓS-BELETRISTA

Paulo Coelho na Academia Brasileira de Letras significa que o gosto das classes médias semi-letradas, expresso pelo mercado, tem um valor impositivo hoje no Brasil para a oficialização de um escritor _embora não influa em nada na qualidade de uma literatura. A mídia anda mais atenta, aliás, a esse critério mercantil de avaliação do que à qualidade literária propriamente dita, pois ela mesma é hoje parte do mundo semi-letrado.

O mercado da literatura brasileira porém é sempre pequeno. As chances de um escritor se tornar um best seller são muito ocasionais. Não podendo contar com o privilégio sócio-transcendental do ofício de literato, que antes vigorava e tinha valor, nem com as glórias frequentes do mercado, muitos escritores _não encontrando satisfação no simples ato de escrever_ passaram a buscar um novo modo de prestígio: a presença constante na mídia.

A escritora X vende meia dúzia de livros, pois não há nada na sua literatura que entusiasme a crítica nem que emocione as massas. Em compensação, X comparece com frequência em todas as revistas e em todos os jornais e não recusa convites para a televisão. Raríssimos leram seus livros, mas ela se tornou genericamente "a escritora", papel que cumpre aliás com mais perseverança do que o trabalho da escrita.

Não é mais a academia de letras, mas a mídia, que abriga e propaga o novo beletrismo pós-beletrista nacional _isto é, aquela camada de escritores, gregarizados e conservadores, que tomam a literatura apenas como um meio (de projeção, de distinção, de chegar à celebridade) e jamais como um fim em si mesmo.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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