Pensata

Alcino Leite Neto

08/11/2002

Descanse em paz quem puder!

A superpopulação é um problema para os vivos e também para os mortos. A prefeitura de Paris anunciou há poucos dias que chegou ao fim o direito à perpetuidade nos cemitérios da cidade. Está faltando espaço para enterrar os novos defuntos. A partir de agora, progressivamente, as concessões de covas serão por tempo determinado _de 15, 30 ou até 50 anos, ainda não se sabe ao certo.

Dos 16 mil mortos registrados em Paris no ano passado, apenas um terço foi enterrado nos cemitérios da cidade. O restante teve que se contentar com mausoléus em cemitérios da municipalidade parisiense situados em cidades ao redor da capital.

Há 14 cemitérios em Paris com 1.157.533 concessões de túmulos perpétuos. Para certos turistas, alguns deles são atrações tão valiosas quanto a Torre Eiffel, pela número de celebridades que repousam eternamente em suas terras.

O visitadíssimo Père Lachaise, por exemplo, é onde ficam as tumbas de Marcel Proust, Oscar Wilde, Edith Piaf, Chopin, Apollinaire, Gertrude Stein, Modigliani, Balzac, Delacroix, Bizet, Ingres, Auguste Comte e de Abelardo e Heloísa.

Lá mesmo, a qualquer hora do dia, em torno do túmulo de Jim Morrison sempre se encontrará um grupo de jovens ou de ex-jovens velando o compositor americano, que morreu em Paris em 1971. O pessoal senta sobre a lápide e ao redor, toca violão, canta, bebe, fuma maconha _a tumba é como um clube para os órfãos do rockeiro.

O charmoso Cemitério de Montparnasse, menor que o Père Lachaise e mais tranquilo, abriga os restos mortais de Baudelaire, Samuel Beckett, Man Ray, Maupassant, Tristan Tzara, Marguerite Duras, Cortázar, Ionesco, Brancusi e também os de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que um dia visitei com os escritores Carlos Heitor Cony e Marilene Felinto, numa deliciosa tarde de 1998... Uma cova ali custa em torno de 16.000 euros (cerca de R 53 mil), mas não existe nenhuma à venda atualmente.

A nova decisão da prefeitura não vai, claro, desabrigar os restos mortais das celebridades dos cemitérios parisienses, mas apenas os de numerosos anônimos. O código atual que rege a concessão de túmulos define que estes não podem ser retomados pela municipalidade a não ser que estejam abandonados há mais de 30 anos e após ter sido feita uma enquete de quatro anos sobre o seu uso. Nesse período, as famílias podem contestar na Justiça a desapropriação.

Faltam covas para os mortos, mas não porque os franceses estejam morrendo em maior número. Ao contrário, eles vivem cada vez mais anos, segundo o jornal "Libération". Em 1983, houve 560 mil mortes no país. Em 2001, elas não passaram de 528 mil. Os homens franceses duram atualmente 75 anos, em média. A mulheres, 83 anos. Hoje, 20% dos franceses tem mais de 60 anos. Em 2020, os sexagenários e além serão cerca de 27%.

Os negócios funerários rendem anualmente 3 bilhões de euros na França. Nos últimos tempos, um ramo promissor dessa atividade é a cremação, que viveu um boom no país e hoje representa 20% do mercado da morte. Ainda é pouco.

É provável que a superpopulação global e a ultra-racionalidade técnica incentivem mais e mais a cremação como destino pós-morte. É uma medida mais prática, mais rápida e menos dispendiosa em termos de espaço vital. Além do que, estamos indo de vento em popa para um mundo de relações virtuais, e no futuro os mortos, quem sabe, serão homenageados em telas de computadores. Ouvi falar de um site que seria uma espécie de cemitério virtual, um templo digital na internet em memória dos trespassados.

Mas adotar a cremação coletivamente não será uma mudança fácil. Há um grande tabu em torno do sepultamento, cujo rito, apesar das constantes modificações, resiste há milênios na cultura ocidental e em outras mais.

É uma questão antropológica interessantíssima saber por que esse modelo de ritual fúnebre permanece, em sua essência, o mesmo há tanto tempo. Abre-se um buraco na terra, mete-se lá o corpo morto, cobre-se, e aqueles que ficaram na superfície vão de quando em quando ao local celebrar o enterrado, do qual não resta nas profundezas mais do que um aglomerado de ossos, ou nem isso, se eles já foram exumados.

O mais simples dos túmulos tem para os homens uma carga simbólica e inconsciente imensa, dificilmente abordável pela razão. Por algum motivo, uma boa quantidade de seres prefere ainda ser devorado por vermes no invólucro de madeira e lodo do caixão e do túmulo do que ser queimado por chamas, no forno dos crematórios.

Para muitos, a destruição lenta no fundo da terra permanece ainda uma imagem menos terrível da dissolução do corpo, depois da extinção da consciência, do que a consumação instantânea no fogo. Enterrado, é como se o morto ganhasse um pouco mais de tempo na Terra, mesmo que dentro de suas entranhas. É como se a Vida tivesse que cumprir um resto de obrigação para com ele, devolvendo-o ao nada da mesma forma como o engendrou, aos poucos. É como se o morto continuasse de alguma forma o trabalho da Vida ao entregar à devoração da natureza o seu legado orgânico.

Além disso, em termos práticos, o túmulo é uma morada eterna bem mais portentosa do que um vaso de cinzas. O cemitério é um espaço público, e o túmulo está sempre ali, disponível à visão de qualquer um que por acaso passe nas redondezas. De alguma forma, mesmo escondido na sua cova, qualquer morto permanece, com seu nome na superfície da lápide, um personagem público, à disposição da memória da cidade.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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