Pensata

Alcino Leite Neto

22/11/2002

Livro aponta os novos reacionários franceses

Um livro de apenas 94 páginas está dando o que falar na França _na imprensa, na televisão, nas universidades, nos meios intelectuais. Nas livrarias, está esgotado. Nos principais jornais, discuti-lo parece um assunto inesgotável. Num ato de grande perspicácia jornalística, mas tipicamente francês, o "Le Monde" fez do livro o tema da sua manchete, sim, da sua manchete de primeira página na edição de hoje do jornal.

O livro se chama "Rappel à l'Ordre - Enquête Sur le Nouveaux Réactionaires" (Chamado à Ordem - Enquete sobre os Novos Reacionários). Seu autor é Daniel Lindenberg, professor de ciências políticas na Universidade de Paris 8 e membro do conselho editorial da prestigiosa revista "Esprit".

"Panfleto" é uma das palavras mais frequentemente usadas pelos comentaristas para caracterizar a obra, que provocou a maior polêmica intelectual do país nos últimos tempos, reavivando o debate político, que parecia moribundo na França.

O escândalo do livro é tanto maior porque Lindenberg, além de apresentar uma caracterização do que chama de "novo reacionarismo" da vida intelectual francesa, também resolveu dar nome aos bois, citando sem pudores aquelas pessoas que se enquadram em sua definição.

Eis alguns dos "novos reacionários" citados pelo autor, alguns deles ex-marxistas e ex-libertários:

Entre os escritores, Michel Houellebecq, Maurice Dantec, Renaud Camus e Philippe Muray;

Entre os filósofos, Jacques Bouveresse, Alain Badiou, Christopher Lash, Alain Finkielkraut, Alain Renaut, Pierre Manent, Marcel Gauchet e Luc Ferry (que é o novo ministro da Cultura);

Entre os sociólogos, Alain Besançon, Pierre-André Taguieff, François Richard e Paul Yonnet.

Quando fala em "reacionarismo", Lindenberg não está empregando a palavra com o mesmo sentido que a vulgata esquerdófilo-marxista lhe atribui, para definir um tipo de aversão à luta de classes e à revolução do proletariado. Pior do que isso, ele quer se referir a pessoas que, de um modo ou de outro, têm manifestado em suas obras uma aversão crescente pela própria democracia liberal, pelos princípios do igualitarismo e do individualismo, pela cultura de massas, pela miscigenação promovida pela globalização, pelo islã.

Segundo Lindenberg, as obras desses "novos reacionários" tomam "a forma de autênticas regressões e visam em seu íntimo, embora sem confessá-lo às vezes, atingir o projeto democrático ele mesmo e sua ambição igualitária". Para o autor, seria preciso tentar entender "como alguns bons espíritos puderam passar, em menos de uma geração, do marxismo doutrinário ao culto da soberania e das idiossincrasias nacionais, da contracultura dos anos 60 e 70 à nostalgia das humanidades, do franco-judaísmo universalista à defesa incondicional de Ariel Sharon, da leitura de Tocqueville à de Carl Schmitt".

É Alexis de Tocqueville (1805-1859), e não Marx, que ressurge no centro desse debate atual. Lindenberg foi militante comunista na juventude, rompeu com o marxismo e hoje é membro do Partido Socialista. Está bastante afastado de grupos de esquerda mais radicais, como o dos intelectuais que se reúnem no jornal "Le Monde Diplomatique" e os que cercaram o sociólogo Pierre Bourdieu (uns e outros muitas vezes relacionados).

Ele é conselheiro da "Esprit", revista criada pela intelligentsia católica e mais tarde convertida ao liberalismo. Seu grupo intelectual professa princípios de esquerda não-marxista, defende uma sociedade aberta e a primazia do liberalismo econômico. A outra grande surpresa do livro, portanto, como assinalou o "Monde", é que o autor ataca pessoas que são próximas do seu próprio campo de atuação intelectual e política, inclusive ex-colaboradores da "Esprit".

Para Lindenberg, os "novos reacionários" estão desfigurando a obra de Tocqueville, que é um marco fundador do pensamento liberal francês, ao tomar dela principalmente as críticas que fez à nascente era democrática. Junto com Tocqueville, que foi o primeiro pensador a analisar em minúcias a sociedade americana, voltou também ao debate a obra de Benjamin Constant (1767-1830), outro ponto de partida do liberalismo.

É curioso que no mesmo ano em que Lindenberg publica "Rappel à l'Ordre" tenham chegado às livrarias várias obras que denunciam e discutem as variadas manifestações do antiamericanismo francês _como "L'Obsession Antiaméricaine", de Jean-François Revel, e "L'Ennemi Américain: Généalogie de l'Antiaméricanisme Français", de Philippe Roger. Os Estados Unidos era o problema do aristocrata Tocqueville e parece ser ainda a questão engasgada na garganta da intelligentsia francesa.

É como se neste país, onde recentemente a extrema-direita chegou bem perto do poder e Jacques Chirac foi reeleito com uma maioria imperial de 82% do votos, onde vestígios de aristocratismo impregnam o sistema político e a vida social continua repleta de limites às classes inferiores e aos milhões de filhos de imigrantes que vivem há décadas na França _como se neste país o debate político tivesse regredido ao século 19. Ou precisasse retornar até lá, para resolver um problema jamais resolvido, que não é outro que o da assimilação da democracia liberal e da sociedade aberta, de massas e multicultural.

CONSTANT E ADJANI, O RETORNO

Benjamin Constant também está de volta à França graças ao filme "Adolphe", adaptação do único romance do pensador e político, uma obra-prima do romantismo e um dos "estudos" mais bonitos já realizados sobre o amor.

O filme é ainda o retorno muito aguardado de Isabelle Adjani às telas, em grande estilo, depois de um longo período de reclusão da atriz e de um filme recente sem graça, que passou despercebido. Adjani domina a cena em "Adolphe", absolutamente magnética, no papel de Elléonore, representando mais uma vez uma mulher vitimada por uma paixão obsessiva.

O filme é uma reconstituição histórica requintada, dirigida com correção por Benoît Jacquot, a pedido (e com produção) de Adjani, que desde a juventude tem adoração pelo livro de Constant.

Por causa do filme, "Adolphe" voltou com destaque às lojas. A reedição deveria trazer como prefácio os dois interessantes ensaios de Ortega y Gasset (1883-1950) sobre o romance, "Leyendo el Adolfo, Libro de Amor" e "Para la Cultura de Amor" (em "El Espectador", volumes 1 e 2, respectivamente). O pensador espanhol, porém, permanece um ilustre desconhecido na França.

ORTEGA Y GASSET, O RETORNO

Como também no Brasil Ortega y Gasset foi posto de lado, traduzo improvisadamente um trecho do seu livro "A Rebelião das Massas" (1930). É um convite à (re) leitura desse clássico, de escrita maravilhosa e com um assombroso arsenal de reflexões sobre a modernidade, que no entanto foi bastante estigmatizado pelas esquerdas, por seu conservadorismo e reacionarismo:

"A vida do homem médio está agora constituída pelo repertório vital que antes caracterizava apenas as minorias culminantes. (...) Se, pois, o nível médio se encontra hoje onde antes apenas chegavam as aristocracias, isso quer dizer que o nível da história subiu prontamente _depois de largas e subterrâneas preparações, mas em sua manifestação de uma só vez_, num salto, em uma geração. A vida humana, na totalidade, ascendeu.(...) Todo o bem, todo o mal do presente e do imediato futuro têm nesta ascensão geral do nível histórico sua causa e sua raiz.

Mas agora nos ocorre uma advertência imprevista. Esse fato de que o nível médio da vida seja o das antigas minorias, é um acontecimento novo na Europa; mas foi o evento nativo, constitucional, da América. Pense o leitor, para ver claramente a minha intenção, na consciência de igualdade jurídica. Esse estado psicológico de se sentir amo e senhor de si e igual a qualquer outro indivíduo, que na Europa apenas os grupos sobressalentes lograram adquirir, é o que desde o século 18, praticamente desde sempre, acontecia na América. E nova coincidência, ainda mais curiosa. Ao aparecer na Europa esse estado psicológico do homem médio, ao subir o nível de sua existência integral, o tom e as maneiras da vida européia em todos os seus aspectos adquiriram imediatamente uma fisionomia que fizeram muitos dizer: 'A Europa está se americanizando'".

Aviso ao leitor: Alcino Leite Neto estará de férias na semana que vem. Sua coluna voltará a ser publicada regularmente a partir de 6 de dezembro.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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