Pensata

Alcino Leite Neto

13/12/2002

O computador perdido e o terremoto de Lisboa

Uma das piores experiências contemporâneas é a perda de um computador portátil. O deste colunista foi furtado há duas semanas dentro do Hotel Atlántico, da rede Best Western, em Madri, cidade que, vim a saber depois, exige dos turistas brasileiros tanta atenção com suas coisas quanto precisam ter os espanhóis com as deles em São Paulo ou no Rio.

Ao chegar nesse hotel, espantou-me que ele tivesse logo na entrada dez pequenos televisores que exibiam várias de suas dependências. Julguei excessiva a vigilância, que, depois, se revelou apenas decorativa. As câmeras, vistosamente dispostas na portaria, não servem de fato para nada, ou apenas para dar a impressão de segurança ao hóspede. Ninguém olha para aquilo, nenhuma gravação é feita do que os minitelevisores mostram. A cegueira atual tem muitos olhos.

Por simples formalidade, fui registrar o furto na polícia madrilhenha, que me atendeu com muita gentileza, mas com visível desesperança. A mocinha chegou a me aconselhar que fosse a uma feira que se realiza aos domingos na cidade para ver se encontrava por lá o meu computador à venda.

Não fui. Segui o curso da minha viagem, esperando que o trauma passasse, pois trata-se bem de um trauma o que sucede àquele que perde o seu computador.

No primeiro momento, quando alguém dá conta de que o seu computador realmente desapareceu, é como se toda a sua vida estivesse comprometida e prestes a ruir nos minutos seguintes.

Junto com o aparelho, foram-se embora compromissos firmados por e-mail, trabalhos já feitos e esboçados, endereços virtuais e reais, arquivos com centenas de textos de referência e de consulta, documentos importantes, fotos, lembretes e por aí vai. Parece que furtaram não apenas uma máquina, mas toda uma biblioteca, os arquivos de um escritório, as agendas pessoais, os documentos no cofre e a carteira.

Sendo complicadíssimo calcular ou sendo incalculável o número de coisas arquivadas no computador furtado, não demora a manifestar, no plano mental, uma sensação estranha, que é a de termos perdido um pedaço da memória. A parte de memória que restou parece mirar, lá dentro do cérebro, a outra parte, como se olhasse para um oco, um quarto vazio.

A sensação de perda é tão forte que emite sinais sobre o corpo, começando ele próprio a desconfiar de seus gestos, como se estes estivessem incompletos. O sujeito continua as suas tarefas durante uma boa hora, feito um morto-vivo, que repetisse vegetativamente as reações, ou alguém acometido por lapsos sucessivos da própria memória imediata.

Mais um pouco, e a consciência inteira poderia sucumbir, perdendo todos os seus laços objetivos com o mundo e mergulhando completamente no vácuo das coisas perdidas.

Começa então o trabalho de luto, ou o inventário das perdas. Vamos nos lembrando, aos poucos, do que estava arquivado no computador e da importância de cada coisa, para desespero nosso.

Mas o simples fato de conseguir recordar um pouco restitui a confiança da consciência. Descobre-se que, trabalhando com um computador, temos de fato duas memórias, que na maior parte das vezes não se justapõem. Confiantes na memória do aparelho, simplesmente deixamos de guardar em nossa memória pessoal uma boa quantidade de informações, mesmo as mais simples ou as mais recentes, como a última mensagem recebida por e-mail.

A recapitulação do que foi perdido acaba sendo um trabalho estafante, tal a quantidade de elementos que vão aparecendo na lembrança. A consciência opta, então, por fazer classificações, em vez de recordar de cada coisa em particular, estabelecendo uma hierarquia do prejuízo. Um esboço de contrato? Pode-se obter outro depois. Os endereços todos? É possível reuni-los mais tarde, aos poucos. As mensagens deixadas sem resposta? Há chances de serem retomadas, assim que o remetente se manifestar de novo.

Ou seja, tudo que depende do outro, de um elo de comunicação, poderá ser de alguma forma recuperado. O que não vai se resgatar mais é aquilo que o sujeito constituiu para si em seu computador como um mundo exclusivo: as idéias escritas, os rascunhos de textos não copiados em papel, artigos ou trabalhos não publicados, as fotos digitais que não foram gravadas em disquetes etc.

Ao fim do dia traumático, o resultado do meu inventário mental foi sobretudo consolador: tive a certeza de que a falta do que fôra perdido iria prejudicar muito pouco a minha vida. Começaram a aparecer na minha memória uma série de elementos triviais que guardava como relíquias, um acervo infindo de links, uma biblioteca inútil de artigos de todo tipo que eu esperava precisar um dia.

Não era o principal do conteúdo deixado em meu aparelho, mas a perda de tudo isso deu-me a sensação um tanto búdica de que eu me livrava de muitos fardos materiais e poderia iniciar uma nova vida, mais simples e menos borgeana, com um novo computador.

Tão logo adquirimos um outro, entretanto, começamos um esforço voraz de recuperação de todas as coisas, que é ao mesmo tempo um trabalho de memória. Em dois tempos, já temos um universo de elementos reestocados, com os quais tentamos reproduzir o ambiente anterior, mas que na verdade vão construindo um outro, que tem do antigo apenas algumas referências.

Há muitas lições a se tirar de um episódio como esse. A primeira, que já deve ter ocorrida ao leitor, é que tudo o que há de importante num computador merece ser gravado em disquete ou copiado em papel.

Mas essa é a lição mais óbvia. A lição central que tirei da minha aventura em Madri é que um computador pessoal não é apenas um instrumento, um meio de comunicação ou de informação: é em si mesmo um lugar onde estamos, onde ficamos.

Com tantas horas de uso, ele acaba por nos pertencer da mesma forma como pertencemos a ele, criando conosco um ambiente coextensivo. Um ambiente mental, vamos dizer assim, onde transitamos como em uma cidade que fosse a nossa cidade, com suas esquinas preferidas, seus cafés, seu correio, suas ruas, seus atalhos, suas lojas, suas vitrines, seus espaços pitorescos, seus engarrafamentos, seus pontos de encontro.

Cidade que está não no computador, guardada lá dentro e vislumbrada na tela, mas que é construída a meio do caminho entre a minha consciência e a tela. Perder um computador é como ver essa cidade ruir num terremoto. Por mais que se copie ou se recupere, algo veio abaixo e não poderá ser reerguido nunca mais da mesma forma.


O TERREMOTO DE LISBOA

Em 1º de novembro de 1755 um terrível terremoto praticamente destruiu a cidade de Lisboa. A capital portuguesa tinha 235 mil habitantes _30 mil morreram sob os escombros. O tremor de terra foi tão forte que seus efeitos foram sentidos em várias partes da Europa. Em toda parte a tragédia foi contada em detalhes, chocando as populações.

Voltaire fez do episódio histórico uma das passagens importantes do "Cândido" (1759). Mas antes disso ele havia escrito um "Poema Sobre o Desastre de Lisboa" (1756), que é uma das peças mais polêmicas do pensamento do século 18, pois toma a catástrofe como pretexto para questionar a bondade infinita de Deus. Se Deus é bom, por que permitiu tal tragédia, que não poupou nem as crianças? A questão de Voltaire inflamou os seus contemporâneos cultos e abriu todo um debate a respeito da natureza do mal e sobretudo da natureza como mal. "É preciso dizer: o mal está na terra:/ Seu princípio secreto é desconhecido/ Do autor de todo bem terá ele partido?", diz o raivoso poema.

Pois bem, foi em Lisboa, a cidade reconstruída pelo Marquês de Pombal sobre os escombros da antiga, que comprei o meu novo computador. Ao saberem disso, alguns amigos soltaram risinhos irônicos. Como se Portugal não pudesse ter computadores iguais aos de qualquer outro lugar do mundo. É a velha visão depreciada que temos de nossos colonizadores _que não passa de uma das manifestações do nosso próprio complexo de inferioridade como brasileiros.

A razão por que o comprei em Lisboa é simples: os teclados de computadores na Europa continental, exceto os portugueses, diferem do modelo americano que usamos no Brasil. O teclado espanhol, por exemplo, não tem til, embora tenha a letra "ñ". O teclado francês segue uma ordem totalmente diversa da regra do "asdfg". As diferenças entre os países da União Europeia são muito maiores do que pode imaginar a vã política.

Trabalhar com um computador que recebeu um Windows em português de Portugal é uma surpresa frequente. O "arquivo" é chamado "ficheiro". A "tela" é "ecrã". O "mouse" é "rato". "Senhas" são "palavras-passe". E o programa nunca está abrindo, mas "a abrir", nem fechando, mas "a fechar". Contam-me que o uso que fazemos do gerúndio no Brasil é uma fórmula ancestral da língua que caiu em desuso em Portugal. Será?

De posse de um outro computador, com programas portugueses, ao mesmo tempo em que refaço meus arquivos, vou redescobrindo a graça e a variedade de um idioma nas palavras triviais da informática. De onde deduzo que, depois do terremoto que enfrentei, acabei ganhando não apenas um aparelho novo como também uma nova geografia e uma nova poética.

Se um dia tiver que dar um título à cidade virtual que estou construindo aos poucos, sobre os escombros da antiga, ela terá certamente algo do nome maravilhoso daquela ladeira de casas velhas em Coimbra: "Rua dos Palácios Confusos".
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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