Pensata

Alcino Leite Neto

20/12/2002

Feijão preto bem brasileiro na mercearia de Paris

A rua Montorgueil, de aparência modesta e sem grandes atrativos turísticos, é um dos paraísos gastronômicos de Paris. Ali, em quatro quarteirões, mais de uma centena de lojas vendem uma infinidade de produtos que estão entre os mais gostosos que a natureza e o homem produziram. Basta um passeio por lá para começarmos a entender melhor por que os franceses se debatem tanto hoje em dia por aquilo que chamam de "diversidade cultural".

No plano culinário, a defesa da "diversidade cultural" não significa apenas fazer birra por causa da McDonaldização do mundo. Implica também em defender uma multiplicidade de paladares, de origens históricas e geográficas variadas, que por mil razões acabaram confluindo nos mercados e na gastronomia da França.

Vamos começar pelos açougues extravagantes. Há três na rua Montorgueil. Eles exibem não apenas as carnes de vaca, de porco e de frango, mas também as de galinha "da roça", carneiro, perdiz, peru, pato, coelho, javali, entre outros animais hoje pouco consumidos no Brasil. Alguns desses bichos ficam dependurados, ainda com seus pêlos sedosos e penas coloridas, no alto das lojas, para quem prefere comprá-los inteiros e limpá-los em casa. As carnes podem ser adquiridas em peças bem cortadas ou em conjuntos pré-preparados, como o lombo recheado de ameixas, praticamente pronto para ser levado ao forno.

As peixarias, enciumadas com a exuberância dos açougues, avançam pelas calçadas os seus balcões, dispondo neles ostras de muitos tamanhos e aparências, devidamente separadas e nomeadas, os lagostins, os camarões, as coquilles saint-jacques com suas formas dengosas em exibição e as lagostas arrogantes amontoadas umas nas outras.

Na loja de secos e molhados, há oito espécies de arroz, entre eles um de espantosa cor vermelha, vindo do Oriente, e mais dez formas de feijão, inclusive o preto "du Brésil" _o único com essa cor exuberante no mercadinho. O balcão de azeitonas apresenta doze tipos diferentes do fruto, em barris bem providos. Como é Natal, estão lá os frutos de ocasião: variadas qualidades de tâmaras, damascos gordos, nozes, castanhas, amêndoas, passas, ameixas secas etc. Os azeites têm muitas procedências: vêm da Grécia, da Itália, de Portugal, da Córsega, da Espanha, do Oriente e, claro, da França. Alguns são aromatizados com trufas negras, com manjericão, com pimenta, com outros cogumelos etc. Os vinagres não deixam por menos _um deles, feito com Jerez espanhol, salta aos olhos.

Na casa de frios, as linguiças secas parecem todas iguais, com sua grotesca casca escura, mas umas são recheadas de carne de porco com queijo roquefort, outras de carne de pato com queijo de cabra. A vendedora insiste: "Esta aqui, com trufas, é mais fina para o Natal". Elas formam uma legião, junto com os foies gras, as terrines, os salames e os presuntos. O brasileiro pergunta de onde surgiram tantas fórmulas. "A receita dessa terrine tem 200 anos", diz a moça, apontando a travessa com uma plaquinha: "À moda antiga".

Não preciso contar ao leitor sobre as lojas de queijos, que são seis na rua Montorgueil, e tentam abrigar em espaços minúsculos os mais de 300 tipos produzidos na França. Nem sobre as casas de bebidas, onde vinhos da Espanha, da Austrália, do Leste europeu e do Chile tentam disputar o espaço ocupado pelos bordeaux e bourgognes. Os conhaques, armagnacs e calvados reluzem, sem rivais, nas prateleiras, ao lado das mais de 30 qualidades de champagne. Também não falarei nada a respeito das padarias, das confeitarias e da lojinha de chocolates, o que seria de uma covardia sem par.

As lojas da Montorgueil são bastante simples e com frequência pequenas. Num só quarteirão é possível encontrar vinte estabelecimentos de um lado e mais vinte do outro. Diferentemente do comércio nos pontos turísticos, o atendimento é bastante informal, como numa grande feira. O fruteiro esticou sua banca enorme pela calçada e passou a atender ali mesmo, rodeado pelas cerejas, as amoras, os caquis e os abacaxis. Uma loja de doces estabeleceu um balcão improvisado de produtos natalinos na rua, à beira do meio-fio.

Ia me esquecendo dos supermercados. São dois na rua Montorgueil. Bem pequenos, mas suficientes. Aqui, eles não conseguiram engolir o comércio de alimentos em seus arredores, como muitas vezes ocorre no Brasil. Com isso, cada ponto da rua se torna uma fonte de surpresas e de fantasias gastronômicas.

Um brasileiro transita por esse universo de produtos ao mesmo tempo como uma criança e como um explorador. Ele se espanta com as cores e as formas das coisas que desconhecia, com as combinações até então implausíveis de ingredientes, com a quantidade de alimentos diferentes agrupados nos lugares apertados. Parece que outra lógica está regendo esse comércio. Sempre a do lucro, claro, mas como se este não devesse entrar em contradição com a variedade das culturas e a multiplicidade das coisas do mundo. Como se o lucro não significasse imediatamente uniformização do gosto, padronização pelos critérios mais baixos nem concentração gananciosa.

Talvez a rua Montorgueil não dure muito tempo. A região onde ela fica está entrando na moda, com o congestionamento do Maris, o bairro vizinho, e lojas de roupas, calçados e design têm ocupado cada vez mais as redondezas. Um amplo restaurante pós-moderno se instalou bem no começo da rua, que até então só tinha cafés escuros e apertados. A inflação imobiliária vai em breve começar a sufocar os pequenos comerciantes, que um dia fecharão as portas e se dispersarão por lugares mais distantes.

A nostalgia é o pior dos venenos. Uma cidade sempre refaz o seu povo. Atualmente, é nos bairros de imigrantes que a Paris antiga está se reencarnando, com outras cores, outros sotaques e outros paladares, enquanto o núcleo da "capital do século 19" vai sendo transformado progressivamente numa grande vitrine turística e num duty free gigantesco.

A FRANÇA ADORA O McDO

O "Journal du Dimanche" (Jornal de Domingo) revela que a França é "o melhor aluno da escola McDonald's". A empresa de sanduíches sediada em Illinois (EUA), que enfrenta hoje uma crise sem par em sua história e planeja fechar 175 estabelecimentos no mundo em 2003, teve lucro inédito no país no último ano. Os balanços prevêem um crescimento de 10% nos negócios, segundo a presidência da McDonald's francesa.

São três as razões aventadas para o sucesso do McDo na França: a boa gestão da crise da vaca louca, a diversificação arquitetônica e decorativa dos restaurantes da rede e a variedade do menu. Um McDonald's francês tem duas vezes e meia mais ofertas de produtos do que seu equivalente alemão.

A notícia é inesperada. Desde que o agricultor José Bové quebrou um McDonald's no interior do país, os franceses, cada vez mais antiamericanistas, passaram a representar no imaginário da antimundialização a principal resistência à poderosa rede de alimentação.

Em Paris, os McDonald's são bastante frequentados por jovens turistas, por imigrantes e os pobres em geral. Basta entrar em algum deles para constatar. Na região de Les Halles, no centro da cidade, perto da rua Montorgueil, há uma predominância de africanos nos restaurantes. No McDo da área moderna da Défense há um espantoso número de árabes. Em grandes cidades do interior, como Marselha e Cannes, ocorre o mesmo.

Não é apenas o preço que os atrai a esses restaurantes, mas também a ausência absoluta de discriminação (os próprios atendentes são da mesma origem social) e a chance de ficar à vontade, durante longo tempo, em grandes grupos. À porta do McDonald's do Forum Les Halles, um shopping subterrâneo, há semanalmente, nas sextas-feiras, uma reunião numerosa de surdos-mudos, de origem modesta.

Eu arriscaria até a dizer, sem nenhuma base concreta, mas tomado pela certeza da intuição, que um outro motivo do aumento dos lucros da rede na França é este: o crescimento da imigração no país e o aumento da pobreza nos centros urbanos.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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