Pensata

Alcino Leite Neto

27/12/2002

"Duas Torres" e a decepção de Christopher Lee

No início de dezembro aconteceu em Paris o lançamento europeu de "Duas Torres", o segundo filme da trilogia "O Senhor dos Anéis". A première para a imprensa foi num sábado à noite. No domingo seguinte, das dez da manhã às quatro da tarde, cerca de 50 jornalistas de várias partes do mundo entrevistaram sucessivamente o diretor Peter Jackson, produtores, roteiristas e o elenco principal do filme.

Tudo aconteceu no elegantíssimo hotel George V, onde a equipe de "Duas Torres" se hospedou. A diária de um apartamento ali não sai por menos de 680 euros (cerca de R 2.300). É uma ninharia, se pensarmos nos US 860 milhões arrecadados pelo primeira parte da trilogia, "A Sociedade do Anel" _o 5º filme que mais faturou na história do cinema.

O tremendo sucesso de bilheteria, que costuma intimidar bastante os jornalistas culturais, sobretudo na área de cinema, talvez explique a excitação em que muitos deles se encontravam. Alguns levaram álbuns e revistas para serem autografados pela equipe de "Duas Torres". Uma das jornalistas, vinda da Áustria, ofereceu a cada um dos entrevistados uma caixinha de bombons de sua terra. Os jornalistas não eram adolescentes, mas homens e mulheres feitos.

Vários deviam estar contentes também por poderem passar o fim-de-semana em Paris _mesmo sem usufruir do domingo inteiro_, graças ao convite da produção do filme, que os trouxe de seus lugares distantes e os hospedou na cidade, num hotel de categoria evidentemente inferior ao George V.

Alguns dos jornalistas conheciam bastante as aventuras e desventuras que cercaram a realização de "Duas Torres". Poucos pareciam no entanto ter refletido o suficiente sobre o filme. As perguntas formuladas eram em geral inócuas e improvisadas. Nesse tipo de entrevista coletiva, chamado de "junket", como o grupo inteiro acaba se beneficiando das questões de cada um dos participantes, pouca gente se dá ao trabalho de "montar" um bom plano de entrevista para si. Raros também chegam ao local movidos por um verdadeiro propósito investigativo, por menos relevante que este seja.

Se algum dos participantes se arvora em "jornalista investigativo", insistindo em abordar suas dúvidas mais persistentes e reiterando em cada uma das entrevistas as questões que pensa serem importantes, de modo a alinhavar os depoimentos _este personagem acaba incomodando o restante do grupo e mesmo os entrevistados, fazendo papel de chato.

De modo geral, os jornalistas querem saber as mesmas coisas _aquelas que imaginam que a maioria de seus leitores também está interessado em ler. É curioso que a dúvida da jornalista japonesa seja tão parecida com a do jornalista norueguês. Eis porque, ao lermos as reportagens publicadas em várias partes do mundo sobre um filme, as abordagens são praticamente as mesmas.

Mais estranho ainda é que os jornalistas queiram saber dos entrevistados sobre coisas que eles já comentaram antes, em entrevistas feitas anteriormente e amplamente divulgadas. Quando ocorreu a "junket" de "Duas Torres", já havia sido publicada a bastante completa e publicitária reportagem da revista "Time" _o que não impediu que as questões ali tratadas voltassem à mesa, em Paris, com aparência de novidade.

Tudo isso gera um clima de amplíssimo tédio nas "junkets", ao mesmo tempo que uma atmosfera de simulação, como num pequeno teatro. Os participantes do filme imaginam de antemão o que será perguntado, os jornalistas supõem antecipadamente o que será respondido. Raramente irrompe uma surpresa, uma novidade, uma contradição no cerimonial.

Não é difícil deduzir que as "junkets" são muito mais instrumentos de divulgação do filme, em que os jornalistas se deixam instrumentalizar pelo aparato poderoso da indústria de cinema, do que uma oportunidade para o exercício do jornalismo e do diálogo crítico. Ou deduzir que o jornalismo cultural dificilmente se distingue hoje do próprio marketing dos produtos.

Fazer entrevistas com mais de 12 pessoas diferentes durante quase seis horas não é, contudo, trabalho fácil. A tarefa deve ser mais dura ainda para os próprios participantes do filme, que são levados de uma sala a outra por assistentes e têm que ouvir coisas parecidas em cada um dos encontros, de modo que na última sessão acabam por decorar o seu papel, respondendo automaticamente às questões, até o esgotamento.

A bela Liv Tyler, por exemplo, ao chegar na sala, vestida com um poderoso e apertado jeans, já não tinha forças para responder a coisa alguma. Perguntada sobre o que gostava na história de Tolkien, foi sumária e simplíssima: "De suas idéias sobre amizade, fidelidade e amor". Um jornalista insistiu em saber se ela achava que as cenas com a elfa Arwen (que ela interpreta), não constando do segundo livro de Tolkien, funcionavam em "Duas Torres" para abrandar o clima guerreiro e masculino do filme. A atriz não hesitou: "Não sei, pergunte ao Peter (Jackson, diretor do filme)". De repente, chegou a pergunta inevitável, que ela já devia ter ouvido em cada uma das entrevistas: "Você gostaria de ser imortal, como Arwen?". Liv Tyler mirou o vazio, respirou fundo e respondeu: "Não é algo que eu pense a respeito. Acho que não".

Tudo seguiria monótono, previsível, consensual e mercantil, se entre os entrevistados não tivesse sido incluído o mitológico Christopher Lee.

O ator inglês de 81 anos, consagrado em filmes de terror, está vivendo hoje um verdadeiro ressurgimento no cinema. Ele trabalhou recentemente para Tim Burton e George Lucas. Está sendo cogitado para substituir Richard Harris, que morreu em outubro, na série "Harry Potter". Em "Duas Torres", interpreta o mago e vilão Saruman.

Lee entrou na sala de entrevistas como se tivesse vindo de outra galáxia cinematográfica: elegantíssimo, de terno, bem disposto, interessado nas perguntas, sem travas na língua, com uma visão crítica bastante acentuada do sistema hollywoodiano e sincero o suficiente para assumir sua decepção com "Duas Torres".

"Por que o sr. praticamente não fala no filme?", perguntou a Folha Online.

"É verdade", respondeu Lee. "Tenho que dizer que muitas cenas foram cortadas. Estávamos falando disso no café da manhã com um outro ator, que também teve cenas suprimidas. Todos os atores tiveram."

"Isso o deixa decepcionado com 'Duas Torres'?"

"Sim, para ser franco estou decepcionado, mas não por vaidade minha. O que eu acho desapontador é que algumas cenas comigo eram muito importantes para a compreensão da história, para explicar as situações. Eu disse para eles: o público não vai entender o que está se passando. Creio que todos os atores tiveram cenas importantes para o enredo que foram suprimidas. No filme anterior foi a mesma coisa. Na época me disseram que as cenas voltariam na versão em DVD. Fui conferir, mas elas não estavam lá."

"O sr. acha que a Hollywood de hoje é muito diferente da do passado?"

"A principal diferença é que no passado eles sabiam fazer os melhores filmes do mundo, com os melhores diretores e atores, e hoje o cinema é apenas um negócio. Outro dia ouvi uma conversa em Beverly Hills entre um agente e um produtor. O produtor disse: 'Eu quero esse ator'. O agente respondeu: 'Ele é todo seu'. Imagine só, o negócio foi fechado sem estar definido um diretor, um roteiro, um argumento, nada que o ator pudesse ler. É isso que os executivos de Hollywood fazem agora nos 'breakfast meetings'. Sabe por que as reuniões são no café da manhã? Porque eles não têm tempo, estão muito ocupados, só lhes restam o 'breakfast'. Liguei outro dia para um agente e a sua secretária me disse: 'Ele está terrivelmente ocupado'. Eu respondi: 'Que bom, isso é sinal que todos teremos muito trabalho'. Mas não é verdade. Eles estão terrivelmente ocupados falando, falando e falando. Atualmente, o dinheiro do cinema vai não para aqueles que sabem fazer filmes, mas para os que são bons de papo."

Assim falou sir Christopher Lee.

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Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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