Pensata

Alcino Leite Neto

03/01/2003

Uma revolução pós-revolucionária

Que um sentimento de renovação tome conta das pessoas e seja compartilhado pela maioria delas não é algo que deva ser desprezado. O homem está há milênios sobre a Terra, vivemos numa embocadura difícil da história, tudo parece triste, perigoso e repetitivo para boa parte das gentes do globo, é cada vez mais rara na Terra a sensação de que uma nova vida _e melhor_ possa estar começando.

Para os brasileiros, porém, parece que o mundo foi reinaugurado. Pesquisa do Datafolha mostra que eles estão bastante confiantes em relação ao novo governo e acham que sua vida vai mesmo melhorar. A pesquisa foi citada por jornais europeus por ocasião da cobertura da posse de Lula. A esperança genérica e sentimental talvez seja um traço do caráter brasileiro, mas dessa vez ela coincide enfaticamente com uma eleição.

"A eleição de Lula foi o único evento positivo em termos mundiais (recentemente)", declarou o sociólogo francês Alain Touraine, amigo de FHC, à Folha. Ele sabe do que está falando. A França viveu em 2002 um dos episódios políticos mais depressivos de sua história, ao ver aproximar da Presidência do país o líder de extrema direita Jean-Marie Le Pen.

Não é apenas Le Pen que incomoda, mas tudo que ele traz também consigo: o que há de mais velho e recalcitrante na sociedade francesa, como o racismo, fora uma resistência implacável à mudança, à renovação.

A França é um país envelhecido, que cultua a si mesmo como uma glória do passado, não como uma força do futuro. Tem horror à globalização, que ela associa à americanização do mundo. Ela vive o presente como uma decadência adiada, incapaz que é de se desfazer de seus fantasmas nacionalistas e abrir-se às levas de imigrantes, que, estes sim, são a verdadeira força da globalização no país e estão renovando a vida francesa, com muito custo, como um dia os imigrantes renovaram a vida americana.

Houve muitas revoluções na França, desde a primeira, em 1789, que pôs o país de cabeça para baixo e mexeu com o mundo inteiro. Pode-se mesmo dizer que foram os franceses que fixaram finalmente a revolução como forma de transformação e renovação política e social. A história chegou ao limite do suportável? Vamos transfigurá-la, sem medir as consequências, em nome de novos ideais: eis uma revolução _que frequentemente vai acompanhada de uma guerra civil.

Em 1694, o "Dicionário da Academia Francesa", definia assim a palavra "revolução": "A volta de um planeta, de um astro ao mesmo ponto de onde eles partiram. Chama-se 'revolução de humores' a um movimento extraordinário nos humores que alteram a saúde. Significa também vicissitude, grande mudança na fortuna, nas coisas do mundo".

Em 1798, nove anos após a Revolução Francesa, o mesmo austero dicionário, acrescentou: "Diz-se também figurativamente da mudança que ocorre nos negócios públicos, nas coisas do mundo, nas opiniões etc. Diz-se 'as revoluções romanas', 'as revoluções da Suécia', 'as revoluções da Inglaterra', para mudanças memoráveis e violentas que agitaram esses países. Mas quando se diz simplesmente 'a revolução', falando da história desses países, designa-se a mais memorável, aquela que os conduziu a uma outra ordem".

A idéia e a prática da revolução teve vida longa e fértil desde o fim do século 18. Os próprios franceses aplicaram-nas várias vezes _e talvez as últimas revoluções de grande significado mundial sejam mesmo a chinesa (1949) e a cubana (1959).

Não foi apenas a "técnica" da revolução que prevaleceu tanto na imaginação humana nos últimos dois séculos, como forma de transformação pela força e pelo sangue de uma situação política tida como injusta ou insuportável. Foi o princípio mesmo da revolução que impregnou a lógica política, ao associá-la inevitavelmente às mais relevantes mudanças históricas. Para as esquerdas de todo o mundo, sem revolução não haveria chance nenhuma de transformar uma realidade política dura e desalojar de fato os poderes vigentes. É um fantasma que ainda nos persegue, embora tenha chegado ao fim a era das revoluções.

Pois bem, eu tenho para mim que o Brasil acaba de produzir uma nova forma de transformação política, uma "revolução à brasileira", para empregar a velha palavra. Ou, indo mais longe, penso que a eleição de Lula, por tudo que ela significa para a história brasileira e para as esquerdas, é o primeiro evento político radical da história pós-revolucionária, no plano de uma nação.

A particularidade desse evento é que tenha ocorrido pela via democrática e represente a possibilidade de renovar a prática da democracia num país, abrindo horizontes à experiência política ativa de cada cidadão e das coletividades, ou seja, à sua liberdade, hoje bastante cerceada, depreciada e deprimida devido aos desastres de uma certa globalização econômica e à lógica internacional da guerra e da vigilância permanentes.

É isso que as novas esquerdas da França e de outros países deverão acompanhar com atenção no Brasil: não apenas o governo de um ex-metalúrgico, mas a produção de um modelo novo de participação e de vivência democrática e mesmo de um outro programa de atuação política num mundo inclinado mais às formas de conservação ou de destruição do que às de criação.

Alguns devem ter estranhado que eu usei bem acima a palavra "radical". É preciso mantê-la. É a única maneira de acentuar que, mesmo sem revolução, a transformação pós-revolucionária pode ser um investimento majoritário e firme no futuro, na mudança, no novo. Porque, no fundo, trata-se apenas disso: acreditar na renovação da vida é acreditar radicalmente na própria vida.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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