Pensata

Alcino Leite Neto

17/01/2003

A capital do cinema é modelo para o Brasil

Paris adora o cinema. Há mais de 300 salas de exibição na cidade, mostrando mais de 500 filmes. A maioria das salas é pequena, mas há também alguns multiplex. Nos dias de semana, depois das 18h, os locais ficam frequentemente cheios. Nos fins-de-semana, ficam lotados. As filas se estendem pelas calçadas, é preciso chegar com antecedência para pegar um bom lugar.

Como a cidade é segura, os cinemas não foram se esconder nos shopping-centers. Ou então o contrário: por não terem se escondido em shopping-centers, as ruas permaneceram tranquilas à noite. Espalhados pelo centro e pelos bairros, entre as lojas e os cafés, eles garantem à região uma vida noturna agradável e civilizada.

Os cinemas apresentam desde os blockbusters americanos, que ocupam as salas mais confortáveis, até a última novidade do mais obscuro país asiático. Um poderoso circuito de cinemas de arte, assegurado pelo governo, permite que as salas organizem mostras que raramente serão vistas em outros lugares.

O melhor lugar para assistir aos clássicos hollywoodianos não é os Estados Unidos: é Paris. Só nesta semana, estão sendo apresentados mostras extensas de filmes de Fritz Lang, Nicholas Ray, David Lynch, dos irmãos Marx, sem contar o festival de westerns, que está há meses em cartaz na cidade.

Se um importante diretor lança um filme novo, como David Cronenberg ("Spider") ou Martin Scorsese ("Gangues de Nova York), os programadores tratam logo de exibir um festival de seus trabalhos anteriores. Se algum ator morre, lá vem outra mostra. Se comemora algum aniversário, mais uma.

As mostras não abordam apenas nomes consagrados. Um diretor pouco conhecido que tenha causado impacto com seu filme recente vira logo tema de um festival, que mostrará sua obra anterior, como é o caso do palestino Elia Suleiman (por causa de "Intervenção Divina"). São também organizadas mostras por países, a fim de manter o espectador atualizado a respeito de determinadas cinematografias, como ocorre no "3º Festival do Cinema Israelense", atualmente em cartaz.

As mostras não são realizadas apenas por instituições, como os museus e a Cinemateca Francesa. Elas são exibidas nos cinemas comuns de "arte e ensaio", com bom afluxo de espectadores. Nas instituições, os festivais costumam ser maiores, mais ousados e com um viés curatorial mais forte.

O Fórum das Imagens, por exemplo, da Prefeitura de Paris, está apresentando a mostra "Animal", com obras que tratam das relações entre os homens e os bichos _inclusive as mutações de uns nos outros, nos filmes fantásticos. Ao mesmo tempo, iniciou o festival "Nemo", com trabalhos experimentais de todo o mundo. O Centro Georges Pompidou (Beauborg), por sua vez, exibe há mais de um mês um festival enorme, "Gelo e Degelo", com a produção soviética dos anos 40 a 60.

Quase tudo, mesmo o programa com filmes antigos, é recebido com interesse pela imprensa e a crítica de cinema, que é variada, curiosa e dedicada ao seu objeto como em nenhum outro país do mundo. Por isso, todo diretor, de qualquer lugar do planeta, quer ter seu filme exibido em Paris.

Para um diretor pouco conhecido, a exibição na capital francesa pode significar o início de uma notoriedade mundial. Para um diretor famoso, a repercussão crítica na imprensa do país dá o melhor aval ao seu filme, pois ele será analisado e discutido com entusiasmo e seriedade.

O método de exibição francesa, ou parisiense, consegue conciliar entretenimento e formação do público, preocupação com a história do cinema e com a produção viva, sensibilidade para a arte cinematográfica e sentido amplo da cultura. Esse método deveria ser um modelo para os brasileiros.

Os impedimentos no Brasil, porém, são infinitos. Os cineclubes estão praticamente extintos no país desde o fim dos anos 80. Não existem cópias suficientes, e a bom preço, de filmes, para fazê-los circular nos raros circuitos alternativos que ainda restam. O país não dispõe de nenhuma boa revista impressa de cinema. A cobertura dos filmes na imprensa é convencional, repetitiva e sem ousadia. As instituições e cinematecas estão imersas no mais profundo sono burocrático, quando não foram simplesmente fechadas. As escolas de cinema se desinteressaram inteiramente de contribuir à formação do público fora dos muros universitários. Não fossem as mostras anuais em São Paulo e no Rio, sem falar nos DVDs, os espectadores ficariam a ver navios.

O governo brasileiro parece se interessar apenas pela produção de filmes, assim como a iniciativa privada, mas a exibição constitui um ponto crucial para a boa saúde de uma cinematografia e para a criação de público futuro. É urgente que se crie uma política nova de exibição alternativa no Brasil, com o apoio dos governos e das empresas, o que, além de tudo, renovaria no país o sentido artístico e cultural do cinema, hoje bastante depreciado.

MELHORES FILMES DE 2002

A revista "Cahiers du Cinéma" (Cadernos de Cinema), publicada na França há mais de 50 anos e considerada por muitos como o melhor espaço de crítica cinematográfica em todo o mundo, publicou na edição de janeiro a sua lista de melhores filmes do ano.

Dezesseis críticos fizeram sua lista, dispondo os filmes em ordem de preferência. A soma dos votos dados a cada um resultou na seguinte apuração final:

1 - "Choses Secrètes" ("Coisas Secretas"), do francês Jean-Claude Brisseau, empatado com "Ten" (Dez), do iraniano Abbas Kiarostami
3 - "Blissfully Yours" (nome difícil de traduzir: algo como "Seu na Mais Completa Felicidade"), do tailandês Apichatpong Weerasethakul
4 - "De l'Autre Côté" ("Do Outro Lado"), da francesa Chantal Akerman
5 - "O Princípio da Incerteza", do português Manoel de Oliveira
6 - "Il Sorriso di Mia Madre" ("O Sorriso de Minha Mãe"), do italiano Marco Bellocchio
7 - "Fale com Ela", do espanhol Pedro Almodóvar
8 - "A Viagem de Chihiro", do japonês Hayao Miyazaki, empatado com "Spider", de David Cronenberg
10 - "24 Horas Crono", série televisiva dos americanos R. Cochran e J. Surnow, empatado com "Gerry", do americano Gus Van Sant.

A interessante e inquieta revista cultural "Les Inrockuptibles", dirigida ao público mais jovem, também fez sua lista:

1 - "Fale com Ela", de Pedro Almodóvar
2 - "Blissfully Yours", de Apichatpong Weerasethakul
3 - "Choses Secrètes", de Jean-Claude Brisseau
4 - "Mishka", do francês Jean-François Stevenin
5 - "Intervention Divine" ("Intervenção Divina"), do palestino Elia Suleiman
6 - "O Princípio da Incerteza", de Manoel de Oliveira
7 - "La Ciénaga" ("O Pântano"), da argentina Lucrécia Martel
8 - "O Homem sem Passado", do finlandês Aki Kaurismaki
9 - "Ten", de Abbas Kiarostami
10 - "La Chatte à Deux Têtes" ("A Gata Tem Duas Cabeças"; "chatte" é também "xoxota"), do francês Jacques Nolot

Alguns desses filmes o público brasileiro conseguiu ver nos cinemas. Outros ele teve a oportunidade de assistir em mostras especiais. Mas quantos terão exibição regular no país?

OS IRMÃOS VALLE E APICHATPONG WEERASETHAKUL

Leitores podem estar se perguntando: "Quem é esse diretor de nome impronunciável, tão bem colocado nas listas com 'Blissfully Yours'"? Apichatpong Weerasethakul tem 32 anos e vive em Bangkok, na Tailândia, onde se dedica mais aos filmes de arte do que de ficção. Este é o seu segundo longa-metragem. Com ele ganhou o prêmio da mostra paralela "Um Certo Olhar", no Festival de Cannes de 2002. A realização custou apenas 150 mil euros (cerca de R 500 mil). Prova de que não é preciso muito dinheiro para fazer um bom filme.

"Blissfully Yours" é extraordinário. Sua beleza e seu arrojo deixaram os críticos franceses entusiasmados. Na primeira parte do filme, um rapaz, imigrante birmaniano, visita uma médica dermatologista para tratar de uma escamação na pele. A consulta, bastante longa, introduz à vida triste e repetitiva de cada dia, com seus banais problemas intoleráveis, mas sobretudo às dificuldades dos imigrantes para achar seu espaço na vida tailandesa.

Tudo isso exaspera a namorada do rapaz, uma tailandesa que sonha encontrar um lugar onde os dois possam viver felizes. Eles apanham o carro e seguem para o campo. Começa a segunda parte do filme, com uma surpresa para os brasileiros: soa na sala uma versão sensacional em tailandês do clássico "So Nice", de Marcos e Paulo Sérgio Valle (adorados no Oriente pós-moderno), cantada por um grupo de vozes femininas.

Só então aparecem os letreiros do filme, como se ele estivesse de fato iniciando ali, mais de 40 minutos depois que começou a projeção. O rapaz e a namorada vão para uma floresta, se instalam à beira de um rio, onde fazem piquenique, se banham, namoram e finalmente adormecem. O diretor filma sem pressa a vigília, depois o sono, e o filme termina.

Weerasethakul mostra o purgatório cotidiano, com um toque nitidamente político, para depois oferecer uma experiência do paraíso. Mas um paraíso dessublimado e sem aspiração ao sublime, em que o tempo, bastante distendido, se oferece como uma trama simples de pequenos acasos em cenas de grande força sensual e sensorial. O espectador sai do cinema leve como uma criança.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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