Pensata

Alcino Leite Neto

24/01/2003

Laboratório Brasil da Nova Esquerda e do Novo Mundo

Lula é o primeiro chefe de Estado a ser convidado ao mesmo tempo para o Fórum Econômico Mundial em Davos e para o Fórum Social Mundial em Porto Alegre. A sua presença em um e noutro evento não é pouca coisa, no plano político. Se nos fiarmos nos jornais europeus, a ida do presidente brasileiro à Suíça produzirá um acontecimento de enorme impacto simbólico e mesmo político.

"O discurso de Lula está sendo muito aguardado (em Davos)", escreveu o jornal francês "Libération" na edição de ontem. A vitória de Lula já não é mais um assunto apenas dos brasileiros: ela está ganhando um significado mundial que só daqui um tempo conseguiremos avaliar em sua justa medida.

Como se não bastassem as expectativas depositadas pelos eleitores brasileiros no presidente, estão recaindo agora sobre Lula, sobre o governo do PT e sobre o Brasil as esperanças de todos ou praticamente todos os grupos de esquerda (e de centro-esquerda) deste vasto mundo.

Lula presidente representa uma vitória da esquerda no plano internacional, claro. Mas de que esquerda? Do mais arraigado marxista ao mais liberal social-democrata, Lula tem a simpatia de todos, não sendo particularmente ligado a nenhuma ideologia. Sendo o que é _esquerda_, Lula é também o "grau zero" da esquerda, pois é sobretudo o indício, a afirmação, de uma nova esquerda.

Na França, seu sucesso nas eleições é desfrutado por pequenos grupos radicais e pelos moderados socialistas, que governaram o país no último mandato. Os primeiros vêem na vitória de Lula um triunfo do proletariado, por meio de um partido bem estruturado, do qual valeria ter uma réplica francesa. Os segundos estão entusiasmados com o "modelo" de união das esquerdas obtido pelo PT para vencer a corrida presidencial.

Ecologistas de esquerda na Europa imaginam que uma nova era se descortina com a chegada ao poder, no país da Amazônia, de um partido como o PT e a escolha de Marina Silva para zelar do Ministério do Meio Ambiente. Os trotskistas estão eufóricos com a nomeação de Miguel Rossetto para o Ministério da Reforma Agrária e prevêem inclusive debater o fato no congresso da Quarta Internacional, em abril, na Bélgica.

Os defensores e pesquisadores da chamada "democracia direta" andam nas nuvens, com as chances de que o PT queira ampliar para o âmbito nacional as iniciativas que já aplicou no plano regional, como a adoção do orçamento participativo, por exemplo. ONGs voltadas ao combate à pobreza, à fome, às doenças e ao analfabetismo se sentem revigoradas tendo ao seu lado um governo devotamente empenhado nas mesmas coisas que elas.

Os anarquistas supõem que, com Lula, o mundo está a dois passos da auto-gestão. Os adversários em geral da globalização já fizeram de Lula o seu Napoleão Bonaparte. Antigos socialistas saltaram fora da cama e do tédio (usando sem permissão uma imagem do historiador Luiz Felipe de Alencastro, atualmente o melhor analista do processo político brasileiro) para exclamar, como Mário Soares: "Lula é o fim do cinismo na política".

Lula trouxe vida nova à esquerda no mundo e a está fazendo se mexer outra vez. Eis porque ele é um fenômeno internacional, que portanto internacionaliza ainda mais o Brasil. Toda aquela esperança de que "um outro mundo é possível" passa agora pelos experimentos que serão ensaiados no Laboratório Brasil da Nova Esquerda.

"O Brasil tem lições a dar à esquerda francesa?", perguntou o jornal "Le Monde" nesta semana. Talvez seja cedo para responder. Mas, se tiver, serão muitas as lições, e não apenas à esquerda da França. Para as alas radicais, a vitória de Lula ensina que terminou a era das esquerdas ideológicas e começou a das esquerdas pragmáticas _e nem por isso menos interessadas na justiça social. Para os esquerdistas neoliberalizados, essa vitória é uma verdadeira aula de prática política feita a partir de bases populares sólidas, antes que nessas mesmas bases desembarque o neopopulismo da nova direita.

Não sendo eu um comentarista político, ou agindo assim apenas de improviso, por uma espécie de impulsão provocada pelos fatos, e distanciado o suficiente de qualquer partidarismo ou ufanismo _eu tenho cá para mim, com toda a liberdade de raciocínio permitida pela ignorância, que a chegada de Lula ao poder está sendo impregnada internacionalmente de um forte sentido histórico.

É como se todas as esquerdas desejassem que a reconstrução do Brasil, idealizada pelo PT, desse certo, para que o país, superando assim seus traumas sociais de formação, resultasse num paradigma civilizatório maduro para o Ocidente, quando o declínio do império americano se acentuar e o Oriente assistir ao reflorescimento da antiguíssima China.

Talvez isso seja só uma fantasia minha _ou das esquerdas. Talvez não. É difícil enxergar nas bandas ocidentais do mundo outro país que, como o Brasil, tenha imitado e abocanhado com tanta satisfação as civilizações anteriores (européia e americana) e possa oferecer delas uma nova, dinâmica e vigorosa síntese cultural e política.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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