Pensata

Alcino Leite Neto

07/02/2003

As "chansons" de Resnais e o tango-soul de Ms. Dynamite

É um privilégio poder assistir no cinema, como acontece agora no Brasil, "On Connaît la Chanson", do cineasta francês Alain Resnais, que vai completar 81 anos em junho. Quando foi lançado em 1997 na França, o filme se tornou um grande sucesso de público. Por uma razão bastante simples: trata-se de um musical, cuja trilha sonora reúne vários hits da canção francesa, do passado e do presente.

Resnais foi um cult no início dos anos 60, com obras difíceis como "O Ano Passado em Marienbad" (1961). Naquela época assistir seus filmes era quase obrigatório, pois a modernidade do cinema passava necessariamente por ele. O primeiro filme de Resnais, um curta-metragem chamado "L'Aventure de Guy", é de 1936. Só 23 anos depois ele faria um longa-metragem, "Hiroshima, Meu Amor", de 1959, escrito por Marguerite Duras, sua obra-prima. Desde então, mais de 40 anos passados, ele fez apenas 16 filmes.

No Brasil, a partir do início dos anos 80, Resnais deixou de ser exibido regularmente nos cinemas. Seu último filme com distribuição regular e nacional foi "Meu Tio da América", de 1980, uma estranhíssima paródia sobre o comportamento humano à luz de teorias neopavlovianas. Depois, os espectadores brasileiros praticamente perderam os laços com o cinema de Resnais, deixando de ver nos cinemas inclusive o extraordinário "L'Amour à Mort" (1984) e o documentário "Gershwin" (1982). Os mais desavisados achavam até o diretor que tinha morrido.

Mas não. Resnais permanece vivíssimo. No ano passado, foi homenageado pela revista "Positif", no Festival de Cannes. Chegou acompanhado de amigos, ouviu duas ou três palavras de saudação, emitiu um sincero "muito obrigado" e sentou-se junto à platéia para assistir a cópia restaurada de um de seus grandes filmes, "Je t'aime, Je t'aime" (1963), uma ficção-científica sentimental e borgeana. Neste ano, vai rodar um novo longa.

Na história do cinema, Resnais está entre os principais inventores de formas, como ressaltou o diretor brasileiro Carlos Adriano num ótimo e detalhado artigo sobre o diretor e "On Connaît la Chanson" para a revista cultural online "Trópico" (www.uol.com.br/tropico). Vou apenas repetir o que já disse Adriano, com o intuito de reiterar o seu desafio ao leitor para que ele vá ver, com novos olhos, o filme em cartaz.

Quem tem na memória "Hiroshima" ou "Marienbad", com sua inventividade estilística, estranha muito "On Connaît la Chanson" _título que se pode traduzir como "Conhecemos a Canção" (no Brasil o filme foi chamado de "Amores Parisienses", sic!). Mas o estranhamento vem na verdade desse vácuo aberto para o espectador brasileiro entre os primeiros filmes de Resnais e os mais recentes. É como se reencontrássemos um amigo 40 anos depois e reclamássemos de suas rugas, sem perceber o desenvolvimento de sua inteligência.

Há um laço, contudo, entre os filmes, e é justamente a inteligência que une o cinema atual de Resnais e o dos anos 60. É certo que Resnais sempre tentou fazer cada filme como uma peça única, recorrendo inclusive a roteiristas-escritores diferentes, que ele insistia serem os verdadeiros autores das obras. Mas os temas caros a Resnais persistem de um filme a outro, bem como os seus traços estilísticos, a sua "forma" de cinema.

Se quisermos simplificar, podemos dizer que tanto "Marienbad" quanto "On Connaît la Chanson" são melodramas burgueses _o primeiro é a história de um adultério, o segundo de uma série de desencontros sentimentais. A estrutura fragmentada e labiríntica do primeiro deixa aparecer com mais nitidez e exuberância a invenção cinematográfica, que no segundo está toda lá, também, mas depurada e discreta, sem oferecer diretamente ao espectador as suas audácias narrativas e formais.

O musical é por excelência o gênero da ruptura naturalista. Ao assistir "Cantando na Chuva", todo mundo embarca naquela história inverossímil repleta de canções e danças, sem se perguntar se aquilo é ou não verdade. É uma fantasia plenamente assumida pelo diretor e pelo espectador.

"On Connaît la Chanson" é um musical e precisa ser avaliado a partir dessa categoria. Só que é um musical irônico e paródico. Resnais escora sua história nos dramas mais banais, fazendo com que a trama seja pontuada por canções que são nitidamente dubladas. As músicas afloram de repente à boca dos personagens, que cantam pela voz de outros. E o procedimento é levado às últimas consequências: às vezes, um homem dubla Edith Piaf, às vezes uma mulher dubla Serge Gainsborough, nas gravações originais, algumas com os ruídos próprios de um registro antigo em disco.

Parece uma simples brincadeira. Também é, mas não apenas. Qual o interesse de Resnais nisso tudo?

As canções pertencem ao repertório francês dos últimos 80 anos, no mínimo, de Mistinguett, estrela das décadas de 10 e 20, a Alain Bashung, um dos mais celebrados compositores atuais no país. Ou seja, são canções que estão na memória coletiva. Como se no Brasil um filme parecido fosse feito com músicas de Lamartine Babo a Renato Russo.

A memória é um dos temas centrais do cinema de Resnais, se não for o principal deles. Em "Toda a Memória do Mundo", documentário de 1956 sobre a Biblioteca Nacional, em Paris, o assunto aflorava na descrição ultra-sistemática do modo como um livro é catalogado, arquivado e consultado. A forma descritiva e exteriorizada do cinema de Resnais não está interessada no conteúdo da memória (do livro, dos livros), mas nos procedimentos que levam à organização e à coleção das "memórias".

A memória também é tema de "Hiroshima Meu Amor" (1959), de "O Ano Passado em Marienbad" (1961), de "Muriel" (1963) e assim vai. A reflexão sobre a memória leva necessariamente à preocupação com o tempo. E o tempo também é uma das questões resnaisianas por excelência. Mas ainda aqui trata-se de uma visão não idealista ou "espiritual" do tempo. Se fosse um filósofo, Resnais, no geral de sua obra, estaria alinhado muito mais com a tradição epistemológica anglo-saxã do que com as correntes francesas de pensamento associadas a Bergson ou a Heidegger. Não há exagero nisso. Resnais parece atribuir uma qualidade científica ou cognitiva ao cinema que muitas vezes esquecemos.

A contribuir ainda com a "imagem inglesa" de Resnais temos esta sua inclinação a satirista social desenvolvida incrivelmente nos seus filmes mais recentes. Não é à tôa que seus laços profissionais com a Inglaterra são tão frequentes, ao menos desde "Providence", quando ele filmou com sir John Gielgud.

E, no entanto, aparentemente, não há filme mais francês do que "On Connaît la Chanson". Mas a França _ou a Paris, melhor dizendo_ que ele mostra é, pelo excesso, a de um olhar que se pretende estrangeiro, distante, examinando as particularidades do comportamento local como se mirasse por um telescópio. E, neste filme, tudo é ainda um problema de tempo e de memória.

No plano formal, o uso das músicas originais instala variadas rupturas temporais na descrição realista, ao fazer estratos do passado eclodirem no presente narrativo. Longe de aumentar o sentimentalismo do filme, o que seria provável com tantas canções, o método cria uma lógica de "jogo" e "surpresa" dentro da narrativa que rompe com o desenvolvimento psicodramático da trama. Pela música, paradoxalmente, o filme se intelectualiza no nível da recepção.

O que estes estratos do passado trazem são "toda a memória musical da França". De um certo ponto de vista, isso significa que a música contém o "arquivo expressivo" dos sentimentos coletivos _de amor, de fúria, de vingança, de carinho etc. Que, numa época em que os diálogos perderam sua originalidade e se transformaram em clichês, melhor é recorrer diretamente aos estereótipos fixados por excelência pelas canções e compartilhados por todos.

A música popular parece ser um fluido que envolve todo o ambiente emocional em que nos movemos _o que fica particularmente claro na sequência final, no apartamento de cobertura com vista para Paris, quando o melodrama se acentua, enquanto desenhos sem sentido "bóiam" sobre a superfície da tela.

Resnais fez um filme sentimental, mas ao mesmo tempo um filme cerebral, num golpe de mestre. Mesmo em "On Connaît la Chanson" ele age como uma espécie de observador-cientista das ações e do comportamento humanos, buscando descrever agora como um sentimento passa do particular ao coletivo, e deste ao particular novamente. Como se os sentimentos não fossem a manifestação de uma interioridade (única, exclusiva e psicológica), mas sim a encarnação momentânea de uma força atemporal e apessoal.


O TANGO-SOUL DE MS. DYNAMITE

Já que falamos em música, continuo. Meu amigo Lúcio Ribeiro escreveu outro dia sobre Miss Kittin, a deusa do electro, e Missy Elliott, cantora sensacional que está renovando o rap e, segundo a revista "Les Inrockuptibles", é maior voz negra americana desde Aretha Franklin. Não sei se Lúcio já falou de Ms. Dynamite. O primeiro disco da cantora, "A Little Deeper", é um dos melhores álbuns lançados em 2002 na Europa. Inglesa, 21 anos, linda, negra, ela é um sucesso tremendo na França. A mesma "Les Inrockuptibles", boa revista de cultura pop, elegeu Ms. Dynamite como a revelação do ano.

De fato, Dynamite é uma cantora excepcional. Não vou me estender na avaliação, que deixo aos críticos de música. Queria apenas chamar a atenção do leitor para essa jóia da música popular, que faz ela própria a maior parte de suas letras e deixa frequentemente a composição sonora para um grande talento, Salaam Remi.

O que há de mais impressionante no álbum "A Little Deeper" é a conjugação, numa das faixas, de duas fontes musicais a princípio totalmente incompatíveis: o tango branco e o soul negro (e um pouco de rap). A mistura explosiva, com direito a bandoneón e tudo, acontece na canção "It Takes More" (letra dela, música de Punch). Não é a melhor música do CD, mas é a mais curiosa _uma verdadeira devoração do tango, gênero vetusto e meio fora de moda, que é ressuscitado para as novas gerações.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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