Pensata

Alcino Leite Neto

14/02/2003

O novo Conselho brasileiro e o ciúme bobo do Congresso

É uma bobagem a onda de ciúme de certos congressistas com o Conselho Econômico e Social (CES) instalado pelo governo Lula. Demonstra falta de cultura política contemporânea. O Conselho não é um órgão legislativo: é um órgão consultivo _e não põe em risco o Congresso, que é uma instituição bastante sólida no Brasil.

Onze dos 15 países da União Européia já adotaram conselhos deste tipo. Há equivalentes em outras partes do mundo. A Associação Internacional dos Conselhos Econômicos e Sociais e Instituições Similares (Aicesis), com sede em Paris, promove a difusão dos CES pelo mundo.

Foi o Aicesis que organizou a visita de membros dos conselhos de Portugal, Holanda e França ao Brasil no final do ano passado, a fim de esclarecer Tarso Genro e a equipe de transição sobre os diferentes modelos de CES que há na Europa.

A implantação de Conselhos Econômicos e Sociais é uma tendência atual dos governos democráticos. Um CES oferece várias vantagens. Permite reunir com um mesmo propósito forças sociais e econômicas divergentes num país, que de outra forma não se encontrariam, ou se encontrariam em situações litigiosas. Com isso, o Conselho ajuda a criar coesão social. Aprimora o nível dos debates na sociedade, ao obrigar que os membros, atuando em diferentes seções de trabalhos, se informem e estudem sobre os temas em questão. Prepara o governo para os embates que ocorrerão no Congresso. Facilita as negociações posteriores entre os parlamentares, abreviando o sempre moroso processo legislativo, numa época que demanda soluções rápidas. Etc. Etc.

Sem falar no seu propósito essencial, que é justamente, como diz o nome, aconselhar o governo sobre a sua conduta e as medidas necessárias para o país. Trata-se, em suma, de uma boa iniciativa do governo Lula, se ele preservar a independência e a autonomia do Conselho, se os seus membros forem significativamente representativos de uma grande gama de forças sociais e se o Executivo não transformar o CES numa escora para suas decisões, neste país em que os decretos-leis proliferam como saúvas.

Abro um parênteses para perguntar, nesta perspectiva, o que Lucélia Santos está fazendo no Conselho. Estará ela representando a classe artística ou as forças políticas da New Age? Não se deve brincar com a representação no Conselho, do contrário ele não se implantará na lógica política nacional e não transmitirá confiabilidade ao cidadão.

O CES francês é o mais antigo dos Conselhos Econômicos e Sociais da União Européia. Sua forma atual foi fixada pela Constituição de 1958, mas desde 1946 já existia um Conselho Econômico no país. Na essência, os conselhos europeus são todos parecidos, mas alguns, como o português e o holandês, servem mais como tribuna de negociações políticas e econômicas do que outros. O governo brasileiro parece ter adotado esta fórmula.

Todos os conselhos tentam reunir representantes dos mais significativos grupos sociais de um país. Na França, 70% dos 231 conselheiros são designados pelas organizações que eles representam, e o restante (30%) pelo governo. Os dois grupos com o maior número de representantes são os assalariados (que contam com 69 conselheiros provenientes dos sindicatos e organizações trabalhistas) e os das empresas (também com 69, vindos das organizações patronais).

Outros 53 membros são representantes das cooperativas agrícolas e não-agrícolas, das profissões liberais, dos departamentos (estados) franceses e de variadas associações. O CES francês inclui ainda 40 personalidades qualificadas no domínio econômico, social, científico ou cultural, escolhidas pelo governo.

Os mandatos dos conselheiros na França têm duração de 5 anos. O presidente e os conselheiros ganham o mesmo salário: 3.000 euros (aproximadamente R 11.700). Têm direito a acumular seus cargos e funções na vida privada, mas não podem ser eleitos deputados. Vão ao CES, cuja sede em Paris é no Palácio de Iéna, uma vez por semana, onde passam uma jornada (pela manhã ou à tarde), atuando no seu grupo de trabalho e discussão. Duas vezes por mês, os conselheiros se reúnem em plenário.

Como escrevi acima, os conselhos europeus, instalados constitucionalmente, têm poder apenas consultivo, nunca legislativo. O governo pede a eles que debatam questões econômicas e sociais relevantes e emitam pareceres, que servirão como aconselhamento antes que as decisões sejam tomadas. As questões são distribuídas entre grupos de trabalhos, chamados "seções" _uma seção discute a reforma da Previdência, outra da segurança, por exemplo. Na França, é obrigatório que o governo consulte o CES para ter o seu parecer (repito: parecer) sobre projetos e proposições de leis, programas ou planos econômicos.

"Além de aconselhar o governo, o CES antecipa questões com as quais a sociedade francesa será confrontada no futuro e exerce também a pedagogia coletiva. O fato de os representantes de todas as organizações debaterem um tema durante semanas e meses eleva o nível de conhecimento dos problemas", disse-me o secretário-geral do CES francês, Patrice Corbin.

O CES francês debateu há dois anos e meio a reforma da Previdência, que o governo só agora vai levar ao Congresso. Os conselheiros podem ser convocados para aconselhar sobre problemas imediatos, mas o mais comum é que estejam trabalhando com questões que contam no médio e longo prazo _e chegam mesmo a ultrapassar o tamanho de um mandato.

Quando o CES francês discutiu a reforma previdenciária, o governo era socialista. Hoje é de centro-direita. Sendo o parecer do Conselho o resultado de um debate entre forças sociais, os aconselhamentos colocados no relatório de dois anos atrás são tecnicamente válidos até agora. O que não quer dizer que ainda sejam válidos politicamente. Ao parecer antigo do CES o novo governo fez ajustes e, 15 dias atrás, foi apresentar com grande pompa o seu projeto de lei aos conselheiros, por respeito à instituição, precaução política e propaganda, tudo ao mesmo tempo. Os conselheiros não voltarão a debater a questão da previdência, pois agora o trabalho é legislativo, ou seja, passa para as mãos do Congresso.

Todos os conselhos europeus têm sua independência e autonomia garantida pela Constituição dos países. O presidente do CES francês é eleito pelos conselheiros reunidos em Assembléia, por meio de voto secreto. O presidente do CES português é escolhido pelo Congresso.

Em Portugal, dentro do CES, mas autônomo em relação a ele, funciona um órgão chamado Concertação Social, que atua diretamente como espaço de negociação social. Ele agrega 18 membros _seis representantes dos sindicatos, seis das organizações patronais e seis do governo. Das reuniões da Consertação Social participam às vezes o primeiro-ministro português e frequentemente os ministros.

Todas as leis sobre o mercado de trabalho e os salários passam necessariamente pelas discussões da Consertação Social. O novo Código Trabalhista português também foi debatido durante meses pela instituição antes de ser enviado ao Parlamento.

Com isso, o governo antecipa-se aos conflitos que podem surgir no âmbito legislativo. "No início, todos os parceiros sociais, empregados e patrões, estavam contra o novo código do trabalho. Depois de várias reuniões, com a presença inclusive do ministro do Trabalho, houve mudanças em várias propostas e, ao cabo, apenas uma das centrais sindicais continuou se opondo a ele. O código que está sendo discutido agora no Parlamento não tem a oposição de nenhum parceiro social, exceto a mesma central sindical", contou-me o presidente do CES de Portugal, José da Silva Lopes.

Para Corbin, o Conselho Econômico e Social não vai impedir os conflitos, "mas pode evitar um certo número de atritos", ao deixar que "as minas explodam" antes em seu território. "Partimos dos interesses privados, dos assalariados, dos empresários e dos agricultores e pedimos a eles que para encontrar juntos um acordo e fazer proposições ao governo no interesse geral. O CES é uma maneira de transcender os interesses particulares e reforçar a coesão social", disse.

O organismo da Concertação Social, utilizado pelos portugueses, não minimiza a função do Conselho Econômico e Social: apenas concentra em si os temas que interessam especificamente a trabalhadores e patrões. Ele facilita também a interlocução com o governo em casos complicados da gestão econômico-trabalhista. Enquanto isso, o restante do CES português debate as demais questões, que podem abarcar desde a violência urbana até medidas ecológicas.

O Conselho Econômico e Social é mais uma instituição burocrática? Não, se for levado a sério _pelo governo, pelos seus próprios membros e pela sociedade. No Brasil, a implantação de um CES tem uma valia suplementar, que é a de permitir que a elite econômica, de um lado, e os sindicatos e organizações populares, de outro, deixem de se tratar com maniqueísmo e possam amadurecer juntos o seu raciocínio político num mundo demasiadamente complexo.

Caso o CES brasileiro vá pelo bom caminho, só haverá um motivo para o Congresso ter ciúmes dele no futuro. Pode ser que as discussões mantidas no Conselho venham a ser mais evoluídas, mais ricas e mais responsáveis do que as travadas pelos parlamentares.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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