Pensata

Alcino Leite Neto

21/02/2003

Totalmente imóvel em "4.48 Psicose"

Os paulistas terão a oportunidade de assistir na próxima semana "4.48 Psicose", peça de Sarah Kane, na montagem de Claude Régy. Muitos irão ao teatro do Sesc, com razão, por causa de Isabelle Huppert, que faz o papel principal. Entendam ou não o francês, língua na qual a peça será encenada, os espectadores sairão recompensados e bastante entusiasmados com a atuação dessa atriz, que é das maiores da atualidade.

Ela permanece imóvel por quase duas horas, de pé, apenas falando e falando e falando. Mexe somente as mãos, um pouco os ombros e, no final, o rosto, mostrando o perfil, pela primeira e última vez. Em apresentações na França, algumas lágrimas escorriam por sua face, bastante visíveis ao espectador, por causa da iluminação. Parecia que elas eram a única coisa que de fato movia no espetáculo.

O escritor Bernardo Carvalho já ressaltou, em ótimo artigo nas páginas da "Ilustrada", da Folha, as características e qualidades do teatro de Régy, 78 anos. Trata-se de um teatro voltado para o valor do texto e das palavras, e não da representação naturalista, da performance física dos atores ou dos efeitos de luz e de cenário.

A peça da inglesa Sarah Kane é praticamente o monólogo de uma mulher em estado psíquico terminal, que questiona sua vida, questionando a nossa por consequência. Há muito de autobiográfico no texto. A autora também passou por tratamento psiquiátrico, também viveu o desespero até o limite _suicidando-se aos 28 anos. Deixou cinco peças apenas, mas que a consagraram como um dos principais nomes da dramaturgia contemporânea de língua inglesa. Elas precisam ser traduzidas urgentemente no Brasil.

Quem lê a peça "4.48 Psicose" fica impressionado com a precisão e a vibração poética do texto e também com a extrema sinceridade da autora, que nada esconde dos outros, nem de si mesma. Mais impressionante ainda, para aqueles que a leram, é ver como Régy e Huppert conseguiram exprimi-la no palco. Ler a peça e logo em seguida ver a montagem dá ao espectador uma clara certeza do que pode o teatro, do que ele é capaz.

O naturalismo produz maravilhas no cinema, mas nos palcos parece um adiamento ou um desvio da verdadeira potencialidade do teatro. A força do teatro está contida na palavra e na encarnação física (e não espiritual ou psicológica) da palavra _o resto é acessório. Não se trata de uma novidade inaugurada por Régy. Todo bom diretor tem consciência disso. Régy apenas enfatiza esse elemento crucial, numa época pirotécnica, que dá valor exagerado às imagens e aos exibicionismos físicos.

Não é justo dizer, contudo, que "4.48 Psicose" não é também uma peça "física", que ela abra mão de toda expressão corporal para deixar a palavra reinar sozinha em cena. A própria imobilidade de Huppert é prova de um imenso trabalho sobre o corpo, que não deixa indiferente o espectador.

Huppert não está imóvel para que a palavra a possua como um espírito, um além-corpo, para que ela seja uma caixa de ressonância do texto. A imobilidade é uma condição para a própria palavra manifestar sua densidade, sua "concretude".

A palavra nasce no corpo tensionado como uma força _ela é como um membro desse corpo, dotado de materialidade e movimento. É como uma parte do corpo que tivesse meios de se desligar dele e atingir a psique do espectador.

Comumente pensamos o teatro como um espaço de representação. Alguns atores se reúnem, incorporam personagens, uma história acontece, eis a imitação da vida e por aí vai. Raramente concebemos que o teatro possa ser o lugar de uma mutação concreta: que a palavra se transfigure em corpo, e vice-versa. Há algo de sagrado nesta perspectiva, mas é disto mesmo que fala "4.48 Psicose": a poesia como uma forma de ressurreição.


Licença

O jornalista Alcino Leite Neto estará de licença por dois meses. Ele voltará a publicar seus artigos na Pensata em maio.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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