Alcino Leite Neto
01/06/2003
O recém-chegado ao Brasil escuta a lista de novidades prometidas e comenta, verossímil, que tudo isso será de grande valia para São Paulo, pois a falência do centro como lugar do entrecruzamento das classes sociais é uma das causas da crescente bunkerização dos paulistas.
Os interlocutores se entusiasmam e tecem loas às conquistas já realizadas: uma arquitetura de Paulo Mendes da Rocha num cantinho de ruas, uma sala de concertos instalada numa vetusta estação, um museu antigo que renovou seu repertório, o centro cultural de um banco implantado no coração da cidade, um artista que trocou uma kitinete na zona sul por um big apartamento num prédio decaído de Niemeyer no centro.
Alguns disparam lamúrias: São Paulo precisaria ter um centro como o de Paris, o de Londres, o de Barcelona! Mas o centro foi largado, o centro foi abandonado, o centro foi arruinado, dizem.
O brasileiro recém-chegado a São Paulo, cético e científico, resolve passear pela cidade para descobrir os sinais do Renascimento Cultural do Centro.
Passeia de dia e passeia de noite. De dia, o centro é um turbilhão de funcionários subalternos, office-boys, balconistas, domésticas, novos migrantes e imigrantes, desempregados, suburbanos, aposentados, camelôs, mendigos, engraxates, pivetes, pequenos profissionais liberais engravatados.
De noite, o centro é praticamente um deserto, exceto aqui e ali, onde ajuntam-se os boêmios em áreas agitadas de bares ou de prostituição. Em quase todo canto e toda hora, as ruas estampam uma brasilidade excessiva e resistente: é sempre o mesmo mundo pobre, popular e marginal _em São Paulo turbinado pelo fluxo atordoante do multiculturalismo e a dinâmica feroz da sobrevivência.
Entre paulistas, a restauração do centro é uma das mais cotadas fantasias da mentalidade pequeno-burguesa. Enquanto cogitam em transformar o centro em uma vitrine social e museográfica, eles vão mandando construir bem longe dali, e bem protegidas do exterior, as suas novas moradias. Conheço jovens da classe média que jamais puseram o pé na praça da Sé ou no Glicério _como se fossem partes de uma outra cidade, a terra perversa e perigosa da miséria brasileira.
Para os viajados, aqueles que conhecem mais as esquinas da avenida dos Champs Elysées parisienses, com seu grotesco novo-riquismo, do que as alamedas dos Campos Elísios paulistas, nas entremeaduras da crackolândia _para esses viajados, o centro é um fetiche. Do automóvel coberto de insulfilm, parecido a um carro funerário, eles miram um decrépito prédio belle-époque no centro de São Paulo e ficam suspirando nostalgias.
Para os membros da elite vanguardeira, o centro é uma aventura de ocasião. Poucos dentre eles se arriscam a andar meio palmo além dos claustros de arte instalados como paraísos culturais no meio do caos das ruas. Eles sonham com as teorias do "flâneur" de Baudelaire e Benjamin, mas preferem passar as tardes de domingo nos ambientes bem protegidos dos Jardins, do Itaim e dos shoppings.
Na verdade, não há nada a recuperar no centro, fora os prédios e as ruas iraquianas. No plano social, o centro continua plenamente vivo, variado, confuso e arriscado, com seus pobres e empobrecidos, e parece resistir às contínuas formas de discriminação, marginalização e criminalização das classes populares em São Paulo. Para estas, os perigos do centro não são maiores do que os das periferias onde vivem. O centro só está decadente para os que ali jamais colocam os pés _ou para os que regurgitam de nojo ao avistarem o Brasil-de-fato..
Em vez de defender uma restauração pequeno-burguesa e turística do centro, é preciso fundar logo o Movimento de Defesa do Centro Popular _e entregar de vez aos marginalizados aquilo que já lhes pertence há tanto tempo como experiência.
UM ANTIGUIA DE PARIS
Há centenas de livros sobre Paris, sua arquitetura, seus locais e sua história urbana. Um dos mais interessantes foi publicado há poucos meses. Trata-se de "L'Invention de Paris" (A Invenção de Paris), de Eric Hazan (editora Seuil).
Hazan não apenas escreve muito bem, com uma erudição estonteante, como lança um olhar bastante original sobre a cidade. Nostálgico da Paris confusa, rebelde, proletária, suja, intelectual e popular, ao mesmo tempo que aristocrática e esnobe, do passado, ele é bastante sensível ao modo como a indústria do turismo está museificando, uniformizando e higienizando a cidade.
O autor só encontra consolo nos bairros onde hoje vivem os imigrantes. Nestes, ele saúda a vibrante experiência de um novo caos multicultural como antídoto à domesticação social da cidade e ao contínuo controle policial dos espaços urbanos..
Toda uma longa parte do livro é dedicada à descrição interessantíssima das relações da constituição de Paris com a história das revoltas e revoluções que, sobretudo no século 19, pipocaram na cidade.
"Aqueles que se felicitam de ver atualmente a cidade tão calma, imersa no contínuo do tempo bergsoniano da dominação e do tédio, poderiam se encontrar um dia bastante estarrecidos. Melhor que todas as outras, a história da Paris vermelha ilustra a observação de Benjamin que o tempo dos oprimidos é por natureza descontínuo. Ao longo dos combates de julho de 1830, testemunhas concordantes e estupefatas afirmam que em vários locais de Paris os insurrectos atiravam contra os relógios dos monumentos", escreve Hazan.
Viva o centro de São Paulo: pobre, popular e marginal
Volta e meia, alguém comenta que o centro de São Paulo terá em breve um ressurgimento. Que a celebrada avenida São Luís está prestes a recuperar seus dias de glória, que a praça da República verá os elegantes passarem outra vez pelos seus jardins, que a avenida São João terá de novo o "trottoir" das famílias, que o Teatro Municipal reflorescerá junto com o vale do Anhangabaú.O recém-chegado ao Brasil escuta a lista de novidades prometidas e comenta, verossímil, que tudo isso será de grande valia para São Paulo, pois a falência do centro como lugar do entrecruzamento das classes sociais é uma das causas da crescente bunkerização dos paulistas.
Os interlocutores se entusiasmam e tecem loas às conquistas já realizadas: uma arquitetura de Paulo Mendes da Rocha num cantinho de ruas, uma sala de concertos instalada numa vetusta estação, um museu antigo que renovou seu repertório, o centro cultural de um banco implantado no coração da cidade, um artista que trocou uma kitinete na zona sul por um big apartamento num prédio decaído de Niemeyer no centro.
Alguns disparam lamúrias: São Paulo precisaria ter um centro como o de Paris, o de Londres, o de Barcelona! Mas o centro foi largado, o centro foi abandonado, o centro foi arruinado, dizem.
O brasileiro recém-chegado a São Paulo, cético e científico, resolve passear pela cidade para descobrir os sinais do Renascimento Cultural do Centro.
Passeia de dia e passeia de noite. De dia, o centro é um turbilhão de funcionários subalternos, office-boys, balconistas, domésticas, novos migrantes e imigrantes, desempregados, suburbanos, aposentados, camelôs, mendigos, engraxates, pivetes, pequenos profissionais liberais engravatados.
De noite, o centro é praticamente um deserto, exceto aqui e ali, onde ajuntam-se os boêmios em áreas agitadas de bares ou de prostituição. Em quase todo canto e toda hora, as ruas estampam uma brasilidade excessiva e resistente: é sempre o mesmo mundo pobre, popular e marginal _em São Paulo turbinado pelo fluxo atordoante do multiculturalismo e a dinâmica feroz da sobrevivência.
Entre paulistas, a restauração do centro é uma das mais cotadas fantasias da mentalidade pequeno-burguesa. Enquanto cogitam em transformar o centro em uma vitrine social e museográfica, eles vão mandando construir bem longe dali, e bem protegidas do exterior, as suas novas moradias. Conheço jovens da classe média que jamais puseram o pé na praça da Sé ou no Glicério _como se fossem partes de uma outra cidade, a terra perversa e perigosa da miséria brasileira.
Para os viajados, aqueles que conhecem mais as esquinas da avenida dos Champs Elysées parisienses, com seu grotesco novo-riquismo, do que as alamedas dos Campos Elísios paulistas, nas entremeaduras da crackolândia _para esses viajados, o centro é um fetiche. Do automóvel coberto de insulfilm, parecido a um carro funerário, eles miram um decrépito prédio belle-époque no centro de São Paulo e ficam suspirando nostalgias.
Para os membros da elite vanguardeira, o centro é uma aventura de ocasião. Poucos dentre eles se arriscam a andar meio palmo além dos claustros de arte instalados como paraísos culturais no meio do caos das ruas. Eles sonham com as teorias do "flâneur" de Baudelaire e Benjamin, mas preferem passar as tardes de domingo nos ambientes bem protegidos dos Jardins, do Itaim e dos shoppings.
Na verdade, não há nada a recuperar no centro, fora os prédios e as ruas iraquianas. No plano social, o centro continua plenamente vivo, variado, confuso e arriscado, com seus pobres e empobrecidos, e parece resistir às contínuas formas de discriminação, marginalização e criminalização das classes populares em São Paulo. Para estas, os perigos do centro não são maiores do que os das periferias onde vivem. O centro só está decadente para os que ali jamais colocam os pés _ou para os que regurgitam de nojo ao avistarem o Brasil-de-fato..
Em vez de defender uma restauração pequeno-burguesa e turística do centro, é preciso fundar logo o Movimento de Defesa do Centro Popular _e entregar de vez aos marginalizados aquilo que já lhes pertence há tanto tempo como experiência.
UM ANTIGUIA DE PARIS
Há centenas de livros sobre Paris, sua arquitetura, seus locais e sua história urbana. Um dos mais interessantes foi publicado há poucos meses. Trata-se de "L'Invention de Paris" (A Invenção de Paris), de Eric Hazan (editora Seuil).
Hazan não apenas escreve muito bem, com uma erudição estonteante, como lança um olhar bastante original sobre a cidade. Nostálgico da Paris confusa, rebelde, proletária, suja, intelectual e popular, ao mesmo tempo que aristocrática e esnobe, do passado, ele é bastante sensível ao modo como a indústria do turismo está museificando, uniformizando e higienizando a cidade.
O autor só encontra consolo nos bairros onde hoje vivem os imigrantes. Nestes, ele saúda a vibrante experiência de um novo caos multicultural como antídoto à domesticação social da cidade e ao contínuo controle policial dos espaços urbanos..
Toda uma longa parte do livro é dedicada à descrição interessantíssima das relações da constituição de Paris com a história das revoltas e revoluções que, sobretudo no século 19, pipocaram na cidade.
"Aqueles que se felicitam de ver atualmente a cidade tão calma, imersa no contínuo do tempo bergsoniano da dominação e do tédio, poderiam se encontrar um dia bastante estarrecidos. Melhor que todas as outras, a história da Paris vermelha ilustra a observação de Benjamin que o tempo dos oprimidos é por natureza descontínuo. Ao longo dos combates de julho de 1830, testemunhas concordantes e estupefatas afirmam que em vários locais de Paris os insurrectos atiravam contra os relógios dos monumentos", escreve Hazan.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas. E-mail: aleite@folhasp.com.br |