Pensata

Alcino Leite Neto

08/06/2003

Os cães ladram e as palavras morrem

Um dia algum pesquisador ainda escreverá sobre a influência das novelas no modo de conversação e relacionamento dos brasileiros. Por exemplo, na maneira como eles se acercam sempre uns dos outros, mesmo na primeira vez em que se encontram, como se estivessem fadados a viver longos capítulos de vida em comum.

Ou na maneira como eles conduzem as conversas para o latifúndio dos sentimentos e das manias pessoais, raramente conseguindo discorrer com clareza, por mais de dois minutos, sobre temas objetivos que não sejam trabalho, família, amor, vida sexual, comida, doença ou saúde --assuntos por excelência telenovelescos ou ao menos televisivos.

Talvez estes sejam também os temas básicos da vida humana, compartilhados gregariamente por todos e independentemente do grau de cultura de cada um. Mas, por isso mesmo, no que têm de elementares, são assuntos capazes de impregnar qualquer conversa de um tédio doloroso, pela quantidade de truísmos, consensos e escatologias que acarretam. Tédio --ou morte-- da conversação que todos disfarçam uns dos outros, entremeando o papo com piadas, confidências e fofocas.

Uma conversa exige capacidade de elucubração, de racionalização, de argumentação, de objetivação, de exposição oral com articulação coerente das idéias, das palavras e, ao menos, do aparelho vocal. Exige um sentimento de mundo, a percepção elevada de que há permanentemente algo a ser descoberto fora de nós mesmos e no outro. Uma conversa exige liberdade --e caráter.

Conversas não se dão entre burburinhos psicóticos ou murmúrios narcisistas e jamais devem ser uma oportunidade para o auto-exibicionismo ou o exercício de autoridade. É frequente no Brasil alguns tomarem o interlocutor por seu escravo ou por seu telespectador.

O brasileiro tem da conversa uma concepção ao mesmo tempo sentimental e senhorial. Para ficar nos extremos, aqui o outro ora é nosso "mano" --ou seja, um comparsa familiar ao qual estamos ligados por um contrato informal e misterioso--, ora é o "doutor" --um sujeito ao qual atribuímos, voluntariamente, ou ele se atribui, uma superioridade inata. Dificilmente imaginamos que uma sociedade é feita de sujeitos autônomos que se confrontam com igual dignidade no espaço comum onde predomina a liberdade objetiva.

A conversa brasileira é com frequência uma armadilha interpessoal em que a hierarquia ou a confraternização se sobrepõe ao diálogo, deixando portanto minúsculo espaço à descoberta do outro e ao confronto de experiências e conhecimentos. Conversamos longamente nas mesas de bares ou de trabalho para, ao cabo, permanecermos identicamente os mesmos, para nos certificarmos do valor de nossas próprias vidas miúdas.

Quem quer que afronte esse conluio pacificador, conformista, entediante e egolátrico, colocando na mesa de conversas, como um rolo de serpentes, um amontoado de temas inabituais --este sujeito é tido de imediato como um pedante perigoso. Em São Paulo, já virou mania chamar cinicamente de "papo-cabeça" tudo que é conversa sólida e aprofundada entre pessoas maduras, curiosas, livres e educadas.

Certamente a leveza é uma das características essenciais da arte da conversação, mas nunca a superfluidade, que é o que predomina entre nós, com nossa mentalidade-zapping, essa implosão da consciência provocada pelo predomínio da televisão e da publicidade na formação mental do brasileiro.

Um país que perde a arte da conversação e a prática da reflexão e do debate, um país onde próprio presidente tem evitado o diálogo aberto e maduro com seus antagonistas, incentivando assim o bulício, a malícia e a astúcia no discurso político, um país onde todos os temas de interesse comum são crivados pelo sensacionalismo midiático, pela propaganda oficial, pela linguagem telenoveleira e pelo "silêncio dos inocentes", isto é, pela auto-complacência dos cidadãos e sua subserviência canina --eis um país onde em breve as palavras valerão menos que latidos.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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