Alcino Leite Neto
14/06/2003
Ó tempo de terríveis obstáculos!(1)
Em sonho, vislumbrei os Orientes,
e seus perversos credos e fanáticos,
curvados sob os calcanhares másculos
da América perene e nossas gentes.
Sonhei que, desde o extremo Sul ao Ártico,
do Canyon ressequido ao vil Saara,
da Casa Branca à capital Cabul,
das geleiras do Alasca às da Mongólia,
levávamos às raças ignaras
a liberdade, o sol e o céu azul,
em troca de alguns poços de petróleo.
E eis que me afrontam infernais tiranos
em países esquivos e riquíssimos
ocultos em cavernas e palácios
e protegidos pelos muçulmanos!
Cruzada! Guerra! Que o Poderosíssimo
torne a vitória para mim mais fácil!
Que tremam todos quando, preventivo,
eu previr previsões imprevisíveis!
Terror e caos! Catástrofes solenes!
E, enquanto o dólar cai sem sobreaviso,
que as bombas tombem sobre Iraques críveis
como nos filmes e nas CNNs!
Ó solidão da América e da Lei!.
Ó antidemocrática platéia!...
Eu prego aos povos e não aos vinténs!
Tony Blair (irrompendo jovialmente na sala):
Meu bravo presidente, aqui me tens!
Deixemos fofocar a patuléia.
Busquemos sem cansar foras-da-lei.
Em ti confio mais que em Big Bens!
Contigo enfrentarei a Eurovelha!
Tens a voz transatlântica de um rei!
Bush (pigarreando):
Rramm! Rramm! Rramm! Mas será que o Tal, enfim,
com a sua petulância de francês,
sentirá no meu brado temporão
O eco texano de um Napoleão?
O eixo do mal me seca a voz e a tez.
Dá-me outra dose, ó doce Blair, do gim.
Blair (servindo um copo cheio):
Deves manter, ó mestre, a atenção.
Franceses são por índole rebeldes
engravatados de Yves Saint-Laurent.
Comem vermes dengosos, comem rã,
não ouvirão Javé nem os Rumsfelds.
Só seguem esta fé: Revolução!
Dividem-se entre esquerdas e direitas,
disputam-se ferozes, nicotinos,
estimam mais a trave do que o gol.
É na cozinha que elaboram seitas.
Ali pregaram em vão os bons Calvinos.
Em França não há deus, mas sim De Gaulle!...
Jacques Chirac (que escutava atrás da porta):
Alguém me chama? Ouvi meu nome augusto
euroestampado em versos zebuínos?
Autorizai, senhores, que, mais justo,
eu passe de imediato aos bons alexandrinos
para dizer-vos firmemente e sem delongas
que tenho em alta conta os mundos beduínos.
Amo os desertos, alcorões e até as longas
cisternas do ouro negro, puro e fescenino (2).
Arábias me seduzem com frissons sem fim.
Mas desde que não venham jejuar aqui
e nos encher de bombas e de muçulmins
os Povos Rudes sem Voltaire e sem Gigi!
Bush (sussurrando para Blair):
Ouvistes bem, ó manso Blair, o que ele diz?
É pena que Le Pen aqui não possa vir.
Blair (sussurrando para Bush):
Essa cabeça vã esteve por um triz!
Vê-lo insolente assim me faz morrer de rir.
(e em voz alta, abraçando Chirac):
Notável presidente, que bela invocatória!...
O que dirá o mundo?...
Chirac (exaltado):
...O que dirá a História?
Quereis tomar o Iraque insano? Ide em frente,
mas conservai-me aqui, a sós, com toda glória.
Mais tarde, helás, veremos a conta-corrente.
Blair (satisfeitíssimo):
E assim termina, ilustre, esta Interlocutória,
enquanto cuida a ONU do que é lero-lero.
Lula (que até então cochilava, desperta subitamente):
A globalização cruel é uma chicória!
Viva a polenta da Marisa e a Fome Zero!
(CORTINA)
FIM
Observações:
(1) Não sendo eu poeta, nem sendo este texto um poema, talvez não precisasse justificar a estranha contagem das sílabas deste primeiro verso. Recorro, porém, ao gramático Evanildo Bechara para autorizá-la. Segundo ele, é possível aceitar "a dissolução de um encontro consonântico pela intercalação de uma vogal ("i" ou "e"), não indicada na escrita, fazendo da primeira consoante uma sílaba à parte, o que revela uma tendência da pronúncia brasileira corrente". Ele cita um exemplo de Gonçalves Dias (em "Tabira"): "Ninguém mais observa o tratado". Para Bechara, "observa" deve ser lido com quatro sílabas: o-b(i)-ser-va.
(2) O personagem Chirac, aqui, também está blefando. Na verdade, seus versos não seguem a regra do alexandrino: são em geral apenas versos de 12 sílabas, quando isso, sem cesura nem rigor. Os outros personagens o imitarão no descuido.
Uma reunião do G8 (Farsa em versos selvagens)
George W. Bush (olhando o mundo pela janela):Ó tempo de terríveis obstáculos!(1)
Em sonho, vislumbrei os Orientes,
e seus perversos credos e fanáticos,
curvados sob os calcanhares másculos
da América perene e nossas gentes.
Sonhei que, desde o extremo Sul ao Ártico,
do Canyon ressequido ao vil Saara,
da Casa Branca à capital Cabul,
das geleiras do Alasca às da Mongólia,
levávamos às raças ignaras
a liberdade, o sol e o céu azul,
em troca de alguns poços de petróleo.
E eis que me afrontam infernais tiranos
em países esquivos e riquíssimos
ocultos em cavernas e palácios
e protegidos pelos muçulmanos!
Cruzada! Guerra! Que o Poderosíssimo
torne a vitória para mim mais fácil!
Que tremam todos quando, preventivo,
eu previr previsões imprevisíveis!
Terror e caos! Catástrofes solenes!
E, enquanto o dólar cai sem sobreaviso,
que as bombas tombem sobre Iraques críveis
como nos filmes e nas CNNs!
Ó solidão da América e da Lei!.
Ó antidemocrática platéia!...
Eu prego aos povos e não aos vinténs!
Tony Blair (irrompendo jovialmente na sala):
Meu bravo presidente, aqui me tens!
Deixemos fofocar a patuléia.
Busquemos sem cansar foras-da-lei.
Em ti confio mais que em Big Bens!
Contigo enfrentarei a Eurovelha!
Tens a voz transatlântica de um rei!
Bush (pigarreando):
Rramm! Rramm! Rramm! Mas será que o Tal, enfim,
com a sua petulância de francês,
sentirá no meu brado temporão
O eco texano de um Napoleão?
O eixo do mal me seca a voz e a tez.
Dá-me outra dose, ó doce Blair, do gim.
Blair (servindo um copo cheio):
Deves manter, ó mestre, a atenção.
Franceses são por índole rebeldes
engravatados de Yves Saint-Laurent.
Comem vermes dengosos, comem rã,
não ouvirão Javé nem os Rumsfelds.
Só seguem esta fé: Revolução!
Dividem-se entre esquerdas e direitas,
disputam-se ferozes, nicotinos,
estimam mais a trave do que o gol.
É na cozinha que elaboram seitas.
Ali pregaram em vão os bons Calvinos.
Em França não há deus, mas sim De Gaulle!...
Jacques Chirac (que escutava atrás da porta):
Alguém me chama? Ouvi meu nome augusto
euroestampado em versos zebuínos?
Autorizai, senhores, que, mais justo,
eu passe de imediato aos bons alexandrinos
para dizer-vos firmemente e sem delongas
que tenho em alta conta os mundos beduínos.
Amo os desertos, alcorões e até as longas
cisternas do ouro negro, puro e fescenino (2).
Arábias me seduzem com frissons sem fim.
Mas desde que não venham jejuar aqui
e nos encher de bombas e de muçulmins
os Povos Rudes sem Voltaire e sem Gigi!
Bush (sussurrando para Blair):
Ouvistes bem, ó manso Blair, o que ele diz?
É pena que Le Pen aqui não possa vir.
Blair (sussurrando para Bush):
Essa cabeça vã esteve por um triz!
Vê-lo insolente assim me faz morrer de rir.
(e em voz alta, abraçando Chirac):
Notável presidente, que bela invocatória!...
O que dirá o mundo?...
Chirac (exaltado):
...O que dirá a História?
Quereis tomar o Iraque insano? Ide em frente,
mas conservai-me aqui, a sós, com toda glória.
Mais tarde, helás, veremos a conta-corrente.
Blair (satisfeitíssimo):
E assim termina, ilustre, esta Interlocutória,
enquanto cuida a ONU do que é lero-lero.
Lula (que até então cochilava, desperta subitamente):
A globalização cruel é uma chicória!
Viva a polenta da Marisa e a Fome Zero!
(CORTINA)
FIM
Observações:
(1) Não sendo eu poeta, nem sendo este texto um poema, talvez não precisasse justificar a estranha contagem das sílabas deste primeiro verso. Recorro, porém, ao gramático Evanildo Bechara para autorizá-la. Segundo ele, é possível aceitar "a dissolução de um encontro consonântico pela intercalação de uma vogal ("i" ou "e"), não indicada na escrita, fazendo da primeira consoante uma sílaba à parte, o que revela uma tendência da pronúncia brasileira corrente". Ele cita um exemplo de Gonçalves Dias (em "Tabira"): "Ninguém mais observa o tratado". Para Bechara, "observa" deve ser lido com quatro sílabas: o-b(i)-ser-va.
(2) O personagem Chirac, aqui, também está blefando. Na verdade, seus versos não seguem a regra do alexandrino: são em geral apenas versos de 12 sílabas, quando isso, sem cesura nem rigor. Os outros personagens o imitarão no descuido.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas. E-mail: aleite@folhasp.com.br |