Pensata

Alcino Leite Neto

22/06/2003

Os ossos de Cristo

"O Corpo" é um desses filmes de quinta categoria que as TVs passam a fundo perdido na madrugada e a insônia nos faz engolir a seco. Tudo na fita é ruim, exceto a intriga: uma arqueóloga judia e sensual descobre nos fundos da loja de um palestino em Jerusalém uma tumba milenar e, lá dentro, um esqueleto que pode ser o de Jesus Cristo.

Corta. O Vaticano em pânico convoca um padre corajoso e aventureiro, encarnado por Antonio Banderas, para ir ao encontro da moça e examinar essa descoberta que põe em risco o centro vital da fé cristã: a ressurreição daquele que é o filho de Deus e ao mesmo tempo Deus. Se os ossos de Jesus estão lá, num sepulcro poeirento, como dizer que Ele salvará os homens da miséria da carne e do sofrimento do mundo?

Em meio à trama do filme, envolvendo um militar judeu calculista, um terrorista palestino, um sacerdote enlouquecido com a descoberta, o alto clero romano maquiavélico e até mesmo insinuações eróticas entre o padre latino-americano e a arqueóloga --em meio a tudo isso, desfila um conjunto de temas religiosos que, se não fazem gozar um cinéfilo, podem levar ao júbilo um escolástico.

Antes do "the end" a pequena filha da arquéologa judia, vendo um crucifixo no pescoço da mãe, presenteado pelo padre, murmura: "Eles (os católicos) podem ver o seu Deus. Que sorte!".

"O Corpo", admirativo e perverso, caminha rente à blasfêmia e, caso avançasse um pouco mais, poderia merecer um anátema. Hiper-hollywoodiano, o filme quer afrontar o limite-tabu da imaginação católica e mostrar o impossível: os restos mortais de Cristo. Mas, calvinista e iconoclasta, faz explodir no final a tumba, deixando no ar a questão da veracidade da descoberta.

Para um amador da iconografia católica imaginar a ossada divina é uma fantasia embriagadora --as imagens de Cristo proliferam na história da cultura em figurações variadíssimas, menos nessa: a representação de seu esqueleto. É como entrar numa terra proibida e num labirinto teológico empurrado pelo trator de um filme "trash".

Os católicos não pouparam esforços para representar Cristo em inúmeras formas ao longo de dois milênios de arte, imaginando-o desde o Seu nascimento até a Sua ressurreição. Seria possível montar uma longa coleção de "fotogramas" a partir das imagens sucessivas que os pintores deixaram, por exemplo, do Calvário. Nestas obras, Cristo sofre, Cristo sangra, Cristo chora, Cristo clama a Deus. E, por fim, Cristo morre.

O magnífico "Cristo Morto", de Mantegna, expõe hiperrealisticamente as feridas no corpo do Deus feito homem. Elas saltam aos olhos do observador como se a própria tela estivesse rasgada. Grünewald, no retábulo de Insenheim, mostra Jesus morto e inteiramente coberto de chagas e lepras.

O corpo de Cristo na arte pode ser humano, demasiadamente humano --mas só até que se feche o Santo Sepulcro com a pedra pesada. Daí em diante, Ele deverá dar aos homens a prova concreta e o exemplo máximo de que Deus nos reserva a todos a ressurreição da carne.

Nem mesmo Martin Scorsese pensou em afrontar o dogma da ressurreição em "A Última Tentação de Cristo", filme que encara outros tantos tabus. Ao contrário, Scorsese reforça a potência divina de reavivar os mortos, ao expor, na hora do milagre da ressurreição de Lázaro, a putrefação em atividade na carne deste homem com detalhes naturalistas (um fedor fortíssimo chega a emanar da tumba de Lázaro, a ponto de incomodar o próprio Jesus). A intenção do diretor é, no fundo, acentuar o destino que nos aguarda a nós, mortais, e a promessa de salvação feita por Deus.

"Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores do parto até o presente. E não somente ela. Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção de nosso corpo", escreveu são Paulo (Romanos, 8, 23).

O cristianismo tem uma visão depreciada da vida e do corpo, como se sabe, o que traz tristes consequências para a história. "A resolução cristã de considerar o mundo como feio e ruim tornou o mundo feio e ruim", observou Nietzsche.

Espanta, porém, que mesmo assim o catolicismo não abra mão do corpo em suas alegorias teológicas. Ressuscitado, Cristo apresenta-se aos apóstolos como um corpo concreto redivivo --e não apenas como um fantasma ou uma manifestação espiritual.

Assim Lucas descreve o encontro de Jesus ressuscitado com os apóstolos:

"Tomados de espanto e temor, imaginavam ver um espírito. Mas ele disse: "Por que estais perturbados e por que surgem tais dúvidas em vossos corações? Vede minhas mãos e meus pés: sou eu! Apalpai-me e entendei que um espírito não tem carne, nem ossos, como estais vendo que eu tenho". Dizendo isso, mostrou-lhes as mãos e os pés. E como, por causa da alegria, não podiam acreditar ainda e permaneciam surpresos, disse-lhes: "Tendes o que comer?" Apresentaram-lhe um pedaço de peixe assado. Tomou-o, então, e comeu-o diante deles" (Lc, 24, 37-42).

(Por vezes, o Novo Testamento parece o roteiro de um filme iraniano com atores amadores.)

Após os apóstolos se certificarem do milagre, Cristo afasta-se e é "elevado ao céu". O dogma da Assunção de Maria também permite à Virgem ascender às alturas, em alma E CORPO, mas no seu caso sem passar pela morte (dogma confirmado apenas em 1950 por Pio 12).

Nos quatro testamentos, os trechos referentes à descoberta do sepulcro vazio de Cristo, no domingo de Páscoa, são todos eles extraordinários. O pavor de Maria Madalena e dos apóstolos ao verem a sepultura aberta e sem o corpo lá dentro é enorme.

A surpresa das pessoas não é menor ao verem diante de si o próprio Jesus ressuscitado em carne e osso e alma. "Alegrai-vos", diz Ele. A ressurreição é o final feliz da elaborada trama espiritual urdida pelo cristianismo. Não será um filmeco, como "O Corpo", de um diretor afinal tímido, que conseguirá desconstruir essa poderosa criação.

Para tanto, seria preciso um diretor mais ousado e um trabalho cinematográfico de proporções experimentais. Quem sabe possamos juntos imaginar o roteiro desse filme. Imaginemos, sim, imaginemos:

Sequência 1: O Sepultamento de Cristo

Como nos filmes bíblicos de Cecil B. de Mille, em pleno dia a noite tomba sobre a Terra. Os soldados romanos carregam o corpo de Cristo. Maria chora. Maria Madalena a ampara. Os apóstolos seguem em silêncio. Todos se aproximam da tumba. O corpo é depositado lá dentro. Dez centuriões empurram uma enorme pedra, que tampa a entrada do sepulcro. Uma música solene ecoa.

Sequência 2: Dentro do sepulcro

A câmera filma em boa distância o corpo morto de Cristo num longo plano inspirado nos filmes de Andy Warhol, que registrou um homem dormindo por mais de seis horas. No caso de nosso filme, o Homem está morto, envolvido num lençol. As horas passam, os dias, as semanas... Nada move.

Sequência 3: O trabalho da natureza

A câmera aproxima-se do corpo, como num documentário científico da National Geographic, a fim de captar o trabalho microscópico e lentíssimo da putrefação (que depois deverá ser exibido em ritmo acelerado). Por uma brecha no lençol, a câmera avista uma mixórdia de vermes. A carne começa a se despregar e a se liquefazer. A carne é triste.

Sequência 4: Dois mil anos depois

O filme mostra, com a câmera em movimento, o esqueleto em que se transformou o corpo de Cristo. Começa pelo crânio nu, segue até a clavícula, continua na caixa toráxica, exibe o fêmur, a tíbia, o tarso, até chegar ao pé com suas falanges. Uma das falanges solta-se do esqueleto e cai no piso do sepulcro. Acompanhamos a queda em câmera lenta, igual nas imagens de Tarkovski. Quando o osso tomba no chão, fagulhas do pó milenar espalham-se por toda a tela, como infinitas faíscas. A tela escurece subitamente. O resto é silêncio.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca