Pensata

Alcino Leite Neto

30/06/2003

Um príncipe prussiano entre os negros brasileiros

Em 22 de junho de 1842, o príncipe Adalbert da Prússia embarcou em Gênova para uma viagem que o levaria até o Rio de Janeiro. Pouco mais de dois meses depois, em 5 de setembro, ele avistava a costa brasileira pela primeira vez: "Estendia-se diante de nós aquela maravilhosa vegetação tropical que dantes, nos livros e nas gravuras, nos pareciam tocar as raias do fabuloso. (.) Tudo estava quieto! Não era como se em vez de termos sido transportados duma parte do mundo para outra tivéssemos sido transportados dum planeta para outro?".

No planeta Brasil, o príncipe, que tinha 31 anos, desembarca nas vésperas das festas da Independência. Em 7 de setembro, é levado, em librés de "verde e ouro", ao encontro do imperador d. Pedro 2º, então com 17 anos: "D. Pedro 2º, extraordinariamente desenvolvido intelectualmente para sua idade, tem-se, ao contrário, até aqui talvez desenvolvido menos fisicamente; é de pequena estatura, e apesar da sua mocidade pode-se dizer antes gordo; tem a cabeça grande; os cabelos louros e as feições regulares; seus olhos azuis, expressivos, dão uma impressão de gravidade e benevolência".

O relato da viagem do príncipe Adalbert da Prússia ao Brasil, escrito pelo próprio na forma de um diário, acaba de ser publicado pela editora do Senado Federal. Chama-se "Brasil: Amazonas-Xingu" e compõe a coleção "O Brasil Visto por Estrangeiros", que inclui outras obras igualmente importantes.

O livro de Adalbert é interessantíssimo. Está dividido em três partes. Na primeira, o príncipe conta sua estadia na capital imperial e no interior do Estado do Rio de Janeiro. Na segunda, sua viagem à região do rio Paraíba do Sul. Na terceira, a expedição ao Amazonas e ao Xingu.

A primeira parte é de longe a mais curiosa, pelo que contém de observação da vida na corte e nas fazendas. Adalbert Heinrich Wilhelm (que a edição, um tanto descuidada, chama apenas de Adalberto) está impressionado com a vegetação e a paisagem, mas também com os hábitos do império e mais ainda com os negros escravos.

No 7 de Setembro, ele é apresentado à corte no palácio de São Cristóvão e acompanha o cortejo imperial até o centro da cidade: "Com os enormes urubus circulando por cima, saudado e aclamado pelos negros escravos embasbacados, alguns vestidos à européia, índios bronzeados e carreiros pretos com seus carros de bois de rodas maciças chiadoras, o solene cortejo seguiu com toda pompa européia, passando pelos claros riachos onde negras seminuas lavavam roupa, por esguias palmeiras, bananeiras, com suas enormes folhas, as árvores de flores vermelhas, toda a original exótica vegetação e pelas aprazíveis colinas cobertas de matas e veladas por espessas e insuportáveis nuvens de pó, no calor abrasador do sol".

O príncipe prussiano continua seu dia agitado, seguindo as demais cerimônias do dia da Independência, inclusive um beija-mãos que o deixa espantado: "Pareceu-me muito estranho quando um velho oficial negro (conhecido no Rio por 'Bonaparte') e além dele muitos mulatos, beijaram as alvas mãos das princesas".

Os comentários sobre os negros continuam: "Divertia-me observando os negros embaixo na estrada, alegrando-me com o seu impertubável bom humor. É um povo curioso! Se andam sós falam consigo mesmos, riem-se alto, assobiam ou cantam. O canto, não obstante sua melodia não agradar aos ouvidos, parece causar-lhes prazer".

Dias depois, ele segue de cavalo com uma pequena comitiva para o interior da Província do Rio de Janeiro, onde encontra imigrantes franceses e alemães estabelecidos em fazendas de café: "Somente os negros e alguns negrinhos que brincavam com as crianças logo nos lembraram que não estávamos na Europa. A conversa, depois de pouco tempo, versou sobre as dificuldades das viagens no Brasil, os maus caminhos e os negros que parece serem olhados aqui como um ser intermediário entre o homem e os animais".

Numa fazenda, ele tem a oportunidade de observar o cotidiano dos escravos. Às 4h30, começava o trabalho, depois de os negros terem tomado "café com açúcar". Às 10h, comiam o almoço de "farinha de mandioca, arroz cozido ou milho". Às 14h, o jantar, com carne-seca _"cuja maior parte vem de Buenos Aires"_, arroz e farinha. Os escravos continuavam a trabalhar até as 19h. Depois, faziam a ceia, com cardápio igual do jantar. Às 21h, deveriam ir dormir. "Contudo, em vez disso, vêm as conversas em comum, quase sempre até meia noite."

Na Europa, o abolicionismo corria a passos largos. A Grã-Bretanha já decretara o fim da escravidão em suas colônias, bem como a França. Mas Adalbert ainda encontra argumentos para justificá-la no Brasil: "Não obstante pender das paredes da sala uma coleção de instrumentos de castigo, de todos os feitios e tamanhos, parece que o negro no Brasil é em geral menos maltratado do que se supõe entre nós, e não vêem na escravidão a dureza que nos parece ser-lhe inerente, porquanto é comum nas suas pátrias e já estão desde a infância habituados a ela".

Explicação que logo denuncia sua impropriedade, quando o príncipe fala das ameaças de sublevação dos escravos: "Por muitos anos Monsieur de Luze morara só com os seus escravos; agora ele e o konigsbergense (alemão de Konigsberg) são os únicos brancos no meio de 70 negros. As espingardas e as pistolas carregadas pendentes das paredes do seu quarto de dormir provavam suficientemente quão pouco confiavam na paz; e mais de uma vez tinha tido de enfrentar os negros, ameaçando-os com as armas carregadas".

Mais tarde Adalbert irá se defrontar com tribos indígenas, cujos hábitos e costumes ele descreverá detidamente. Tentará encontrar traços brancos nos índios. Em vão. Dirá por fim que os indígenas têm expressão "estúpida", embora dispense a eles uma simpatia que não concede aos negros.

Imaginar um príncipe prussiano viajando nas terras do Brasil imperial, passeando sua figura loira entre os negros humilhados, parece coisa do teatro do absurdo. Mas a viagem ocorreu de fato, e o relato da expedição tem a vantagem de ter sido feito pelo próprio príncipe.

Adalbert é homem que não escapa em essência do protótipo de sua época, com seu racismo e seus preconceitos de classe. Por isso mesmo, ajuda-nos a entender como seus iguais, brancos como ele, encaravam a escravidão e os negros. Mas trata-se também de um observador entusiasmado e perspicaz, bastante atento às contradições da sociedade brasileira da época _que deixaram uma pesada herança sobre nossas costas. Daí a utilidade da leitura desse livro antigo, que soube ver os urubus enormes circulando sobre a natureza esplêndida do Brasil.

Ainda o príncipe Adalbert

Tomei a liberdade, neste artigo, de citar para o leitor longos trechos do livro do príncipe Adalbert, pela curiosidade que eles ostentam e como convite à leitura da obra. Continuo abaixo com outras passagens, igualmente interessantes. Adalbert, depois da viagem ao Brasil foi uma figura capital para o desenvolvimento da marinha prussiana. Morreu em 1873, 15 anos antes da Abolição da Escravatura no Brasil.

A república independente dos paulistas

O príncipe começa o seu livro com um resumo da história brasileira do Descobrimento até os anos 1840. Em determinada passagem, ele escreve sobre os excêntricos paulistas: "Até então tinham sido os paulistas uma população misturada de brancos, indígenas e descendentes de ambas as raças (mamelucos) que nas cercanias de São Paulo formava uma espécie de república independente que, procurando ouro, cruzavam o interior, tendo avançado até às fronteiras de Mato Grosso e Goiás".

Tropicalismo avant-la-lettre

Na noite do dia 10 de setembro, o príncipe descobre como os brasileiros conseguem "ajustar" a cultura européia aos trópicos. Junto com o imperador e as princesas, vai ao Teatro de São Januário, assistir "Le Chevalier du Guel e Lousiette": "A companhia não era muito boa, mas os décors eram altamente divertidos, porquanto as cenas nos bulevares de Paris eram representadas à sombra de esplêndidas palmeiras e bananeiras, de maneira que os habitantes do Rio não puderam levar para casa uma impressão exata da capital da França!".

A eleição no meio do mato

No interior da Província do Rio de Janeiro, cercado pela natureza primitiva, o príncipe prussiano se depara de repente com uma experiência democrática: "Quando voltávamos, encontramos perto de Santo Antônio o juiz-de-paz no seu carro (possivelmente uma charrete, nota deste colunista), com a faixa verde-amarela a tiracolo, e os eleitores dirigindo-se para a igreja para se reunirem lá, porque hoje devia realizar-se a eleição para deputados".

A tataravó da caipirinha

Adalbert deve ter sido o primeiro prussiano a experimentar o delicioso drinque brasileiro, hoje amplamente difundido na Alemanha e na Europa: "Refrescados por um ponche, uma bebida muito refrescante, preparada com água, cachaça, açúcar e limão, voltamo-nos, de repente, para oeste, depois de termos desde Campos cavalgado quase que invariavelmente para o sul.".

Os índios e os russos

Confrontado com os indígenas e seu tipo físico inclassificável, o príncipe os descreve meticulosamente e até consegue encontrar neles certa semelhança com os camponeses russos: "A cor dos indígenas é um pardo escuro; seus rostos são, sem se poder dizer exatamente feios, um pouco almucanos, com zigomas salientes, e uma expressão estúpida; os cabelos pretos _só nalgumas crianças tinham uns vislumbres alourados _ pendem desgrenhados por cima do pescoço e são, como nos camponeses russos, cortados em linha reta na frente e atrás."

Estados Unidos do Brasil

Adalbert enumera longamente as condições militares do Brasil e o sistema de proteção territorial do país. E prefigura, exclamativo: "Se o Imperador pudesse, como os Estados Unidos, dispor de uma população de 80 mil marítimos, homens dos países setentrionais, fortes e robustos, e as finanças do Império andassem 'pari passu' com as deles, que situação não assumiria perante o mundo inteiro!".
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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