Pensata

Alcino Leite Neto

06/07/2003

Mário de Andrade, o último crítico de Fernando Sabino

No campo da crítica literária, envelheceu bastante a idéia de que se deva examinar nas obras a própria carpintaria da escrita, como no caso da prosa (romance, novela e conto) o andamento da história, a composição dos personagens, o desenvolvimento dos temas, a progressão dos conflitos, os ritmos da narrativa etc.

Para quem escreve, porém, são essas coisas as que mais interessam. O escritor pode não dar a mínima para o cânone, para os modelos consagrados da literatura. Mas com certeza ele estará sempre preocupado em saber se conseguiu de fato criar um objeto autônomo, capaz de ficar de pé independentemente de sua própria imaginação e de afetar de modo singular a emoção e o intelecto alheios, dos leitores _se conseguiu, enfim, criar uma obra, um mundo.

Por trás de cada livro, há um trabalho vibrante e tormentoso de elaboração, resultado não apenas dos compridos dias passados diante da página em branco, mas também das horas infinitas gastas na observação, nas notas e nos esboços realizados pelo autor. Sem falar nos documentos e memórias que alguns precisam recolher, por exigência do tema, ou nas rememorações complexas, em que o escritor vasculha o fundo da sua psique, ou até nas viagens concretas que às vezes ele precisa fazer para ajudar na construção de seu mundo literário.

Envolvido pela narrativa, o leitor em geral não percebe quanta trabalheira um romance ou um conto deu ao seu autor. Isso, sem contar todos os anos anteriores gastos por ele na sua própria formação, lendo tudo que vê à frente, aprendendo, analisando, comparando, discutindo, disputando, acumulando um sem-número de decepções, problemas e alternativas.

São raros no Brasil os livros que testemunham a formação de um escritor e o seu trabalho de criação. São raros, aliás, também em outras partes do mundo. Os autores deixam múltiplos traços de sua carpintaria, mas poucas vezes tratam dela abertamente, exceto se pretendem estabelecer um método de escrita, como fez em relação à poesia o americano Edgar Allan Poe em "A Filosofia da Composição", para pegarmos um exemplo consagrado.

No Brasil, por exemplo, permanece um poderoso enigma a "reviravolta" literária de Machado de Assis, quando ele abandona o romance convencional e dá a luz às "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Sobre essa mudança que funda precocemente a literatura moderna brasileira foram aventadas as mais diversas hipóteses, mas em geral exteriores à próprio invenção literária, que é onde a revolução machadiana principalmente se dá.

Estaríamos condenados à ignorância a respeito dos dramas de construção de uma obra não fossem os biógrafos, os testemunhos dos amigos do escritor, os entrevistadores meticulosos (como os da antiga revista "Paris Review", que costumavam perguntar aos autores sobre os pormenores da criação) e os críticos genéticos, que fazem uma verdadeira arqueologia da elaboração dos livros clássicos a partir dos manuscritos.

E se não fosse a correspondência deixada pelos escritores, onde, tendo a garantia da privacidade, eles se abrem com os amigos a respeito das dificuldades que enfrentam _esperando as suas críticas e conselhos.

Para quem se interessa pelos processos de formação do escritor e de construção das obras, há no Brasil uma notável correspondência mantida entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel (autor do menosprezado "A Vida Ociosa"), que vale a pena ser lida. As cartas ocupam os dois volumes do livro "A Barca de Gleyre".

Ao longo de mais de 40 anos, os dois amigos-escritores debateram a respeito de suas leituras e do que iam escrevendo, um servindo ao outro de interlocutor, alter-ego e crítico primordial, no campo da escrita.

Infelizmente, o livro traz apenas as cartas de Lobato. Mas estas, por si mesmas, já são bastante ricas, com as críticas que ele dirige ao trabalho de Rangel e as que faz à sua própria literatura.

No Brasil, há ainda a pequena, mas imprescindível correspondência de Guimarães Rosa com o seu tradutor alemão, por onde podemos compreender muito da elaboração de sua literatura titânica _sem falar nos vários testemunhos deixados por contemporâneos e familiares a respeito.

A grande obra brasileira, porém, que exprime como nenhuma os impasses e os procedimentos criativos dos escritores é a correspondência de Mário de Andrade. Missivista fanático, Mário trocou cartas com vários autores, entre jovens e consagrados, nas quais ficaram registrados não apenas os seus dilemas literários, mas também abundantes conselhos e análises dos poemas e prosas de seus interlocutores.

Dentre essa correspondência, a de Mário de Andrade com Fernando Sabino é particularmente importante. As "Cartas a um Jovem Escritor e suas Respostas", que acabam de ser reeditadas pela Record com acréscimos, deveriam ser lidas por todo escritor aspirante.

As cartas começaram a ser trocadas em 1942, quando Sabino tinha 18 anos e Mário já alcançava os 49. Existe nelas todo um anedotário de época e uma boa quantidade de curiosidades históricas e literárias que fazem a graça do livro _como um episódio que "traumatiza" o jovem Sabino, quando Mário alega problemas para ir a Belo Horizonte ao casamento do mineiro, do qual seria padrinho. Ou as críticas impiedosas de Mário a Lúcio Cardoso e ao ambiente literário da época. Ou o mal-estar do escritor paulista com o governo de Getúlio Vargas, com a sua glória pesada de modernista e com o início da velhice.

O que mais importa, contudo, na correspondência são os comentários literários de Mário e seus conselhos a Sabino. Embora generosos, os conselhos de Mário não são paternalistas. Ele é mesmo cruel, da maneira como sabia ser, sem imprimir um tom de ofensa à sua crueldade.

Ele recebe as cópias dos contos e romances do então ignorado Sabino e lê e comenta a respeito de tudo, pacientemente. "Que idade tem você", pergunta Mário na primeira carta (10/01/1942). "Isso importa extraordinariamente num caso como o seu, por causa justamente das possibilidades fartas. Si (Mário escrevia assim) você está rodeando os vinte anos, de vinte a vinte e cinco como imagino, lhe garanto que o seu caso é bem interessante, que você promete muito. E o livro, neste caso é bom. Mas si você já tem trinta ou trinta e cinco anos, já estudou muito (você parece de fato se preocupar com a expressão linguística) e está homem-feito, não lhe posso dar aplauso que valha. Neste caso o livro fica medíocre, sem o menor interesse".

O fato de Sabino ter apenas 18 anos entusiasma Mário, que vê no jovem uma promessa de escritor. "Veja bem: você tem direito de exigir minhas cartas e explicações. Você tem os direitos da idade, de querer saber e de querer saber", escreve na segunda carta (25/1/1942). "Mas exijo que você pense muito seriamente sobre você. Tanto mais que, pelo que seu livro indica como tendências pessoais, o seu caminho na arte é pesado, muito árduo e sem brilho. Você não irá estourar por aí, ganhando a batalha de um golpe só, como um Lins do Rego, uma Rachel de Queiroz. Sinto que você não foi feito pra isso nem poderá nunca fazer isso. Seu destino artístico é miúdo, feminino, de nhem-nhem-nhem. O caso da 'água mole em pedra dura'.".

Estabelecer o tipo de vocação literária de Sabino, o tipo de "energia" de que dispõe efetivamente o jovem escritor, em decorrência de seus traços de personalidade, de sua origem, formação e experiência, é uma questão de base para Mário poder iniciar sua série de comentários a respeito dos trabalhos que lhe são enviados pelo mineiro.

Houvesse ainda críticos assim no Brasil, muita gente já teria parado de escrever irrelevâncias ou teria reorientado sua literatura para melhor, como aconteceu com o jovem João Cabral de Melo Neto depois do artigo de Antonio Candido sobre o primeiro livro do poeta ("Pedra do Sono", 1942). Candido fez João Cabral se dar conta de que a vertente construtivista de seus trabalhos era mais promissora do que a surrealista.

Nas cartas seguintes, Mário aconselha leituras e entra nos pormenores da prosa. "Gostei muito do 'Companheiro' (um conto de Sabino) e pouco do Professor. Também este era de dificílima realização. Não tem dúvida que você caracterizou psicologicamente o professor, mas além de pôr demais psicologia anedótica (repare que o tipo é um pouco impossível, por exagero), creio que escolheu o processo mais pobre pro caso: o monólogo interior. Numa psicologia escassa como a do professor, repare como o monólogo interior não rendeu. Você não poude escapar da pobreza de memórias e sensações: e a pobreza, embora caracterizante, ficou literariamente pobre de verdade. A volta sucessiva dos mesmos fatos (e fatos poucos) ficou duma grande monotonia e de um já sabido que só mesmo realizado numa linguagem, num estilo perfeitíssimo como arte, ainda poderia interessar. Creio que pro seu assunto, em vez do monólogo interior, teria sido preferível a descrição de autor. Você poria em evidência a pobreza interior do tipo, mas enriqueceria essa pobreza com a sua observação pessoal de autor".

Quem ainda examina as obras assim, mesmo em críticas "privadas"? As observações do modernista autor de "Macunaíma" _livro, aliás, que Mário caracteriza numa das cartas como uma " 'obra-prima' que falhou"_ vão se tornando, com o aprofundamento da amizade, menos distantes. Permanecem, porém, minuciosas e pertinentes, às vezes até mais ainda do que no início, por Mário conseguir então medir as consequências da vida pessoal no trabalho literário de Sabino.

Os comentários ficam também mais severos _e até dolorosos_, ao ponto de praticamente diagnosticarem o "nó" que talvez tenha entravado a literatura de Fernando Sabino, como no trecho a seguir de uma carta emocionante de Mário de Andrade (de 3/12/1944):

"A sua possível ganância de sucesso se confunde, por enquanto, com o natural arroubo e o natural excesso de vitalidade do moço. Assim: eu falo exatamente da sua ganância 'estética', que levou você cedo demais à 'Marca' (novela de Sabino, de 1944). E os elementos fundamentais de que é feita a 'Marca', sejam os técnicos, sejam os de assunto, denunciam essa ganância estética. (.)

"Você tem uma ganância estética que me faz duvidar da sua continuidade de evolução, como artista. E si eu já sabia disso pelos elementos de que é feita 'A Marca', todo um pedaço insustentável desta sua carta confirma isso escandalosamente: a sua queda no 'Cristo'. Na sua idade e na sua vida realizada, o Cristo não passa dum academicismo. O Cristo não salvará você da sua derrota como artista. (.)

"Mas você fez um esforço demasiado. E o fantasma do menino-prodígio que se gasta demais me persegue. E depois disso, eu tenho seguido, mesmo sem você saber, a sua vida de artista. Você continua vivendo demais. E enfim, o que é mais duro de dizer, que desde muito eu estou querendo dizer mas sem força pra dizer: você não foi mineiro na criação da 'Marca' (novela de Sabino, de 1944), e não está sendo mineiro na sua vida carioca, e nem na sua vida belorizontina de artista. Sempre: de artista. Você está vivendo artisticamente demais. Você está conquistando simpatias condescendentes mesmo nos grupos que deviam detestar você. Que era preciso que detestassem você. Você está escolhendo amigos que são más companhias pro artista Fernando Sabino. Você está abandonando os seus amigos de Minas, abandonando em gravidade, readquirindo em gratuidade, em camaradagem, o seu grupinho, o Hélio (nem tanto), o Otto, o Paulo, que são os únicos amigos que podem salvar você. Você, de longe, no Rio, com saudade, tarde da noite, se desmanda a escrever cartas gratuitas, fazendo espírito! Isso é trair, se trair, trair a amizade, trair o grupo, trair a sua mineirice. E você, desprovido (por dentro), de Minas, é um artista acabado."

Mário de Andrade morreu no ano seguinte ao desta carta, em 1945. Fernando Sabino vive no Rio de Janeiro e completa 80 anos em outubro próximo. Vários de seus livros foram sucessos de público _Sabino é afinal um escritor que tem fascinado mais os leitores do que a principal crítica do país. O conjunto de sua obra, de mais de 20 livros, ainda aguarda uma avaliação honesta, firme e generosa, como a que foi feita nos anos 40 por Mário de Andrade e que depois nunca mais ninguém se dispôs a realizar de fato.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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