Pensata

Alcino Leite Neto

20/07/2003

As revoluções de Rohmer

A exibição em São Paulo de "A Inglesa e o Duque", de Eric Rohmer, é um evento de primeira grandeza. Trata-se de um dos filmes mais importantes realizados nos últimos anos, tanto do ponto de vista cinematográfico e artístico, quanto político e histórico.

Da perspectiva artística, é uma revolucionária adequação das tradições do cinema com a recente tecnologia da imagem digitalizada. O diretor Eric Rohmer, figura central do cinema moderno, hoje com 83 anos, realizou seu filme todo em vídeo digital, mas de modo surpreendente: utilizou como cenário e ambiente aquarelas que recriam a Paris do século 18 e não se escondem como imagens pintadas.

Isso quer dizer que ele abriu mão de uma das práticas mais convencionais do cinema nesses casos, que é a reconstituição de exteriores com cenários realistas. Na contracorrente, convidou um pintor para desenhar imagens de palácios, ruas, praças, pontes etc., inspirado na iconografia histórica e baseado numa rigorosa apuração sobre as condições urbanísticas de Paris na época da Revolução Francesa. Os atores andam pelos locais como se estivessem penetrando em quadros.

A técnica dos cenários pintados não é novidade no cinema. Proveniente do teatro, ela foi utilizada nos primeiros anos do cinematógrafo (inventado em 1895) e ao longo do século 20 aparece em centenas de filmes, como fundo de cenas. Hitchcock, por exemplo, a utilizou frequentemente, inclusive nas suas obras-primas. Mas a tendência nesses casos é sempre imitar perspectivas da realidade e não deixar que o espectador sinta o "falso" da reconstituição.

Cenários pintados foram utilizados também em vários filmes de vanguarda, mas poucos tiveram a ousadia de Rohmer, que é a de tentar conciliar a artificialidade do ambiente com o mais estrito realismo cinematográfico no restante da mise-en-scène.

Em "A Inglesa e o Duque", os cenários são evidentemente artificiais, mas Rohmer segue fielmente a norma da encenação realista, num tom de narrativa setecentista e com leve teatralidade. É isso que também distingue o procedimento do diretor da linguagem do videoclipe e da publicidade, que são hoje os estilos que mais utilizam a técnica digital da inserção dos personagens em ambientes "artificiais".

Da mesma forma que nas publicidades e nos videoclipes, Rohmer fez seus atores interpretarem as cenas de rua em estúdios desprovidos de cenários, com fundo infinito (uma tela de cor neutra atrás dos intérpretes) com rigorosas marcações dos movimentos "no vazio". Em seguida, no computador, encaixou digitalmente os cenários pintados aos movimentos dos personagens.

A grandeza deste filme está no modo como ele faz confluir para si diversos recursos (técnicos, visuais e narrativos), dos mais modernos ao mais conservadores. Ele trabalha positivamente com o instrumental contemporâneo, mas sem fazer tábula rasa das tradições artísticas. Ao contrário, prova que não há incompatibilidade entre essas tradições e as experiências com os aparelhos tecnológicos de ponta. O filme concilia a linguagem digital e suas novidades com vários estratos da história do cinema e da cultura.

Da perspectiva política, "A Inglesa e o Duque" é um filme que gera um prolongado debate sobre o terror como instrumento de ação, recolocando questões que ainda nos são bastante atuais.

Na França, o filme foi recusado na lista oficial de representantes franceses no Festival de Cannes de 2001 e suscitou uma forte desconfiança. É que Rohmer mexe com um dos tabus da Revolução Francesa (iniciada em 1789): os seus períodos de extrema violência política conhecidos como Terror (1792) e Grande Terror (entre 1793 e 1794), durante os quais milhares de pessoas, entre nobres, políticos e agentes da própria revolução, foram levadas à guilhotina, inclusive o rei Luís 16 e sua mulher, Maria Antonieta.

É preciso distinguir o Terror das rebeliões violentas em grande escala que dão início ao processo revolucionário e também distingui-lo do que hoje se sintetizou na fórmula do "terrorismo".

A Revolução Francesa, como todas as outras que a sucederam, estoura violentamente, na forma de conflagrações populares, em 1789 _e não fosse assim, a monarquia absolutista talvez não tombasse. Foi com muito sangue que se firmou pela primeira vez os "direitos do homem e do cidadão" que nos são tão caros. Mas a Revolução Francesa não foi precedida por atos clandestinos de terrorismo, como os praticados hoje em dia.

O Terror é um momento em que a violência se torna na França uma prática pública, sistemática e estruturada pelo governo então vigente, sob o pretexto de levar a cabo um ideal almejado na origem do processo revolucionário. Desse modo, ele ganha a adesão não apenas de grande parte do corpo político, mas também da população, que ajuda a praticá-lo recorrendo ao que está em seu domínio imediato: a vigilância e a delação. O clima de paranóia e medo que se espalha pela nação ajuda a reforçar a política do Terror.

Se a Revolução Francesa praticamente inaugura os tempos modernos, o que ocorreu durante o Terror no país é o seu processo mais polêmico, como novidade histórica. Seus praticantes o justificarão, na época, como o único recurso contra a guerra civil e as ameaças à Revolução vindas continuamente do estrangeiro. No longo prazo, a fórmula do terror vai, senão justificar, ao menos dar um fundamento político às práticas violentas e repressoras empreendidas por partidos que assumem totalitariamente um governo _sobretudo no século 20.

Já lá se vão séculos nos quais historiadores e analistas políticos se perguntam se o Terror e a radicalização terão sido ou não necessários para o triunfo dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade da Revolução.

Questão que permanece em aberto, embora mexa bastante com nosso delicado espírito democrático. Nossa época fechou consenso _ainda bem!_ contra partidos que defendem o terrorismo e as práticas organizadas de violência do Estado. O tema do terror político, porém, foi largamente tolerado nas discussões travadas ao longo de todo o século 20 _e permanece portanto um fantasma teimoso na idéia de muita gente.

São problemas assim que emergem da leitura do filme de Rohmer, baseado no diário de uma aristocrata escocesa, Grace Elliot, a "inglesa" do título, que testemunhou a Revolução Francesa e o Terror, do qual foi quase uma vítima.

Elliot deixou suas impressões em "Diário de Minha Vida Durante a Revolução Francesa". Embora fosse monarquista e estimasse a família real da França, não defendia a chamada monarquia absolutista que predominava no país antes de 1789 _talvez preferisse um regime monárquico liberal, como o inglês da época. Era amante do duque de Orléans, apelidado de Philippe Egalité (Igualdade) por ter aderido aos ideais revolucionários (como deputado, ele chegou mesmo a votar a favor da decapitação de seu primo, o rei Luís 16).

É a condenação do rei à guilhotina e a radicalização comandada por Maximilien de Robespierre que levam Elliot a desenvolver uma visão aguda contra o processo revolucionário, o que se espelha no filme nos magníficos diálogos travados entre os personagens _sobretudo entre a "inglesa" e o duque de Orléans. "A revolução pode ser ruim para nós, mas será boa para nossos filhos", diz ele, tentando consolar a ex-amante.

Mas é a sensibilidade feminina e aristocrática de Elliot que se impõem na narrativa, dando margem para que o espectador tenha uma interpretação bastante depreciada da política do Terror, e mais ainda do entusiasmo popular com a Revolução. São várias as cenas em que o povo nas ruas é representado como um bando de mal-educados, furiosos e selvagens.

No processo da Revolução Francesa, "le peuple", o povo, deixa de ser uma idealização paternalista e subalterna e vira um conceito político afirmativo, investido de ação primordial na história. A idéia de que a Revolução foi feita pelo povo e para o povo e que, assim, este triunfou legitimamente sobre as injustiças seculares, firmando-se como categoria social dominante, é um dogma da história política da França. A Revolução de 1789 provou que a "sublevação do povo nunca é espúria", diz uma carta citada no filme de Rohmer.

O povo é também uma categoria da arte francesa. A partir de 1789 ele aparece, sempre de maneira heróica, jubilatória e revolucionária, nos romances, nos poemas, nos quadros e, mais tarde, nos filmes. Jean Renoir é o maior cineasta do "peuple" francês _aquele que fez a principal representação deste povo no cinema, em filmes como "A Marselhesa".

Mas a visão do povo em Renoir é altamente complexa. Filho do naturalismo, para ele o homem do povo é aquele para onde confluem o instinto animal e o humano demasiadamente humano. E, como filho do socialismo populista, o diretor opõe a espontaneidade, a solidariedade e a energia dos conjuntos populares à hipocrisia, ao individualismo e à etiqueta retentiva da aristocracia e da burguesia.

Renoir nos lembra que o cidadão almejado pela Revolução sempre será, afinal, "A Besta Humana" (título de um de seus filmes, baseado em Zola). Mas diz também que o "povo" pode ser a única salvação da razão política, a fonte da liberdade transformadora numa realidade que chegou ao limite do jogo vicioso das classes dominantes ("A Regra do Jogo" é o principal filme de Renoir).

É com Renoir que Rohmer, no fundo, dialoga. Além de problematizar o Terror e o terrorismo, seu filme é uma grande interrogação lançada sobre dois séculos de representação revolucionária do "povo" no imaginário político e cultural francês e ocidental. Apenas uma interrogação _que Rohmer deixa sem resposta. Pelo simples fato de colocá-la, no entanto, isso pode despertar em muitos a suspeita de que o diretor teria adotado uma perspectiva aristocrática ou reacionária em "A Inglesa e o Duque". Será?

Em tempos tão consensuais como o nosso, com tantas questões e contrariedades, o filme de Rohmer é um verdadeiro elixir revigorante para o debate cultural.

UMA PERSPECTIVA BRASILEIRA

Os equívocos de observação, vamos dizer assim, que "A Inglesa e o Duque" pode suscitar em alguma platéia no Brasil são grandes. A começar que a Revolução Francesa não é algo que seja do domínio de um bom número de espectadores, entre os quais este colunista se inclui. Considerar a parte do Terror pelo todo da Revolução seria uma das piores interpretações do filme, como alerta o próprio Rohmer. A revolução começa antes do Terror e da tirania de Robespierre e continua depois disso.

Mesmo no que diz respeito apenas ao Terror, toda visão esquemática é perigosa. É preciso lembrar que, em meio aos processos cruéis, arbitrários e autoritários, moralmente condenáveis, é o governo do período que decreta a obrigatoriedade do ensino gratuito laico para todo cidadão e faz uma determinada redistribuição da riqueza nacional. Em 1790, havia 120 mil indigentes apenas nas ruas de Paris _um quinto da população.

É preciso mencionar também que estamos tomados por idéias caritativas a respeito da justiça social e temos do próprio "povo" brasileiro, ou das classes economicamente inferiores, em geral uma visão idílica ou depreciada, em suma: pré-revolucionária ou nunca-revolucionária.

Por fim, como não chegamos a viver no Brasil nenhum processo revolucionário como o experimentado na França, podemos julgar, com nossa sensibilidade sentimental, supersticiosa e escravagista, que revoluções são sempre um mal _o que não constitui verdade histórica.

Outro erro é achar que o terrorismo pode ser hoje um modo de precipitar a transformação política. Sabe-se que não. O terrorismo, com a aversão pública e moral que suscita num número cada vez maior de gente, perdeu sua sua substância política e se transformou numa categoria do crime organizado e do misticismo religioso.

Resta perguntar sobre a própria validade da idéia e da prática da revolução nos tempos que correm. Atualmente, a simples hipótese de que um regime venha a cercear nossa liberdade individual em nome de um ideal político nos causa um frio horripilante na espinha. Optamos pela "revolução individual" em vez da transformação coletiva, como se uma não dependesse da outra. Trocamos os grandes ideais e utopias por uma palatável política-delivery.

No fundo, não foi apenas a idéia de revolução que caiu em descrédito. Foi a própria percepção da história que mudou para nós: já não a encaramos como uma série de rupturas traumáticas, provocadas pela guerra e pelo sangue, mas como um sobrevôo leve por entre realidades negociadas, tal como se deslizássemos por cenários digitalizados iguais aos do filme de Eric Rohmer.

O BONÉ VERMELHO

A tradução de uma das legendas de "A Inglesa e o Duque" na cópia em exibição faz um diálogo do filme brincar com um fato recente da realidade brasileira. Em determinado momento, a "inglesa" Elliot, bastante indignada, reclama que obrigaram o rei Luís 16 a colocar o "boné vermelho" em sua cabeça.

O boné no caso é o barrete frígio, espécie de capuz vermelho usado pelos sans-culotte, a frente revolucionária de 1789 formada pelas massas pobres de pequenos artesãos, empregados e desempregados. Colocar este símbolo revolucionário na cabeça do rei significava uma imensa humilhação para o monarca.

Nada a ver com o boné vermelho do MST que Lula vestiu um dia desses, gerando tanta polêmica.

UM PESCOÇO SENSUAL NA ERA DA GUILHOTINA

Em meio a tanta discussão política, pode passar despercebido para muitos espectadores de "A Inglesa e o Duque" o modo bastante sensual como Rohmer filma o colo da atriz Lucy Russel, no papel de Grace Elliot. É como se, entre admiração e crueldade, o diretor dissesse: que pena este lindo pescoço estar sempre a um passo de ser condenado à guilhotina!

A ameaça que paira sobre a personagem, explorada sensualmente pela imagem, é um efeito hitchckoquiano do cinema de Rohmer, como alertou a revista "Cahiers du Cinéma". Rohmer é autor, com Claude Chabrol, de um dos principais livros já escritos sobre Hitchcock.

Certamente a atriz não foi escolhida apenas por tais dotes: sua performance é admirável, ofuscada apenas pelo genial ator que é Jean-Claude Dreyfus, no papel do demagógico duque de Orléans.

CINEMAS EXEMPLARES

Uma palavra final para cumprimentar o Cinesesc, na rua Augusta, que tem hoje uma das melhores programações de cinema de São Paulo, junto com Top Cine, na avenida Paulista, que aliás está exibindo "Conto de Outono", outro importante filme de Rohmer.

São ambos cinemas que enfrentam revolucionariamente a boçalidade dominante nas salas da capital, para falar um pouco como o velho e bom diretor Rogério Sganzerla.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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