Pensata

Alcino Leite Neto

27/07/2003

Argentina, um país do futuro

Jorge Luis Borges afirmou certa vez que a Argentina era um país "imitativo".

Foi o superenriquecimento do país no início do século 20 que favoreceu a construção de uma Argentina que parecesse um pedaço da Europa instalado na miserável América Latina. Estar mais próximo do modelo europeu (e mais tarde, norte-americano) de vida e civilização era um elemento de distinção para os argentinos.

O superempobrecimento no início do século 21 jogou por terra essa construção. Arruinada, a Argentina viu-se, de uma hora para outra, identificada com a dura realidade dos países vizinhos, como o Brasil.

Diante da desordem financeira que se implantou no país, foi o próprio FMI que propôs aos argentinos que eles imitassem a gestão financeira do Brasil. Façam como os brasileiros e estarão no caminho certo, disse o Fundo Monetário.

Mas não é simples para a Argentina eleger o Brasil como modelo. As diferenças macroeconômicas entre os dois países se acentuaram enormemente nas últimas décadas em favor do Brasil, que se tornou, apesar de tudo, uma potência regional. Há quem fale, inclusive, numa inevitável "anexação" da Argentina pela economia brasileira, via Mercosul.

Fora isso, o Brasil --com sua pobreza crônica, sua mestiçagem cultural e sua confusão social-- foi sempre um dos principais contra-exemplos dos argentinos no que diz respeito ao seu projeto de país.

Talvez para uma Argentina empobrecida e esquerdizada, o Brasil de Lula pudesse ser agora ao menos um modelo político. Mas não é. A subserviência da gestão petista ao FMI e ao capital internacional, a sua incapacidade de oferecer um projeto nacional independente ao Brasil, passou a caracterizar para os argentinos uma espécie de fraqueza dos brasileiros diante daquelas forças que justamente arruinaram a Argentina e também mais um exemplo da falta de caráter que nos atribuem.

Para Nestor Kirchner, imitar Lula, agora, é trair o brio da Argentina. O que talvez explique a impertinência deste presidente durante sua última ida à Europa, quando ele falou poucas e boas aos investidores internacionais e faltou sem aviso a reuniões com empresários, preferindo passear pelos bulevares de Paris e Madri. Numa viagem simultânea, Lula encarnou o bom menino, deixando a Kirchner o papel de garoto travesso.

A psicologia aplicada à política, por inessencial que pareça diante dos movimentos dominantes da economia, pode contudo ser útil para explicar reações inusuais dos líderes --reações que ultrapassam a lógica conveniente das razões de Estado e da diplomacia.

A ruína argentina é tamanha que ela permite a Kirchner o luxo de se comportar como um adolescente rebelde. Miserabilizada e humilhada, a Argentina é hoje um país sem modelos: recusa a imagem dos "pais traidores" e rejeita a imitação do "irmão" brasileiro, apontado como exemplo pelos mesmos "pais".

A Argentina parece estar deixando de ser um país "imitativo", depois de ter se tornado o primeiro "des-país" produzido pela globalização financeira.

Solitariamente e a duras penas, os argentinos precisarão de agora em diante amadurecer para si um novo projeto nacional, talvez mais modesto, mais popular e mais latino-americano do que almejavam, e que vise decididamente o futuro, escapando o mais breve possível do labirinto da nostalgia.

PS - O colunista permanecerá duas semanas ausente da Pensata
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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