Pensata

Alcino Leite Neto

24/08/2003

Piscinas de Guaianases e de Hockney

O Brasil vive atarantado com as disputas em torno da reforma da Previdência, da reforma tributária e da reforma agrária. Mas ninguém fala da reforma aquática, que é uma das coisas que mais interessam às crianças de Guaianases, na periferia de São Paulo, e possivelmente à maioria das crianças de outras periferias.

Há poucas semanas, os meninos de Guaianases pularam de roupa e tudo na piscina do primeiro Centro de Educação Unificado (CEU), no dia da inauguração da escola pela prefeita Marta Suplicy. Foi uma festa e tanto. Alguns deles nunca tinham entrado numa piscina, como tem gente que jamais pôs os pés no mar ou se banhou num rio.

Estamos no inverno, mas não importa: uma das delícias da vida é pular dentro deste retângulo de água represada, decorada e civilizada. Talvez eu esteja exagerando, mas a piscina é um dos exemplos mais felizes e inteligíveis do encontro possível entre desejo, cultura e natureza. Satisfaz os sentidos, permite um contato envolvente com a água (sempre misteriosa, mas bem menos temível que o mar) e, seja dentro dela ou ao seu redor, a piscina garante uma sociabilidade agradável, tranquila e sensual.

Na Europa, em várias cidades, implantar piscinas públicas é um dos compromissos republicanos.

No velho continente, as piscinas viraram mania no início do século 20. Em 1922, a Alemanha contava com 1.362 piscinas e a Inglaterra com 810. Preocupados com o número escasso delas em Paris (apenas 27), os franceses iniciaram então uma frenética empreitada para aumentá-las. Hoje, a capital tem mais de 80 piscinas abertas ao público.

Em São Paulo, talvez no Brasil inteiro, os clubes de lazer e esporte são firmemente hierarquizados. Em clubes nos bairros ricos, conseguir uma cota de sócio, mesmo para gente endinheirada, é tarefa mais difícil que achar uma vaga nas universidades de Oxford.

Os ricos também se auto-discriminam, como se sabe. Um novo rico, para entrar num clube tradicional, precisa fazer um árduo trabalho diplomático com os velhos sócios --sem contar a quantia milionária que vai gastar. Em certos círculos, a filiação a um clube sofisticado serve para uns contarem vantagem sobre outros, que, perguntados sobre a agremiação à qual pertencem, se ruborizam de vergonha ao ter de pronunciar o nome de seu modesto clube pequeno-burguês.

São raras as piscinas públicas em São Paulo, e são inexistentes nos bairros muito pobres. Quem pensaria em piscinas, quando falta tudo em certos locais: escola, esgoto, polícia? Em contextos assim, elas parecem um luxo. Talvez sejam, mas quem disse que os luxos também não precisam ser democratizados?

Fotomontagem/Folha Imagem
À esquerda, meninos mergulham na piscina de Guaianases; ao lado, pintura de David Hockney
AS PISCINAS DE HOCKNEY

Como os meninos de Guaianases, o pintor inglês David Hockney adora piscinas. Elas são tema de vários de seus quadros, como "A Bigger Splash", de 1967. O quadro dá nome à mostra de arte inglesa em cartaz na Oca, em São Paulo, e é uma das suas principais atrações.

O nome do quadro é um tanto difícil de traduzir. Hockney chama a tela de "A Bigger..." (Um Maior...) porque havia feito antes, em 1966, uma obra chamada simplesmente "Splash".

"Splash" é uma onomatopéia, sugerindo o som de algo que cai na água. A palavra pode ser traduzida como "borrifo", "pancada na água", "barulho na água", "respingo" ou simplesmente "mancha".

O pintor retrata no quadro uma piscina doméstica, nos fundos de uma casa na Califórnia, sem viv'alma, e onde o ambiente severamente arquitetônico, de linhas muito geométricas e pacificadas, é agitado por um jato d'água que salta da piscina.

O jato irrompe na tela com vigor, feito uma mancha caótica que sujasse a construção rigorosa e quase hiperrealista das formas. O jato de água é também o único sinal humano na paisagem trans-humanizada do quadro.

Por meio do jato, Hockney indica que alguém acabou de se lançar ruidosamente dentro da piscina. É esse "personagem" ausente ou submerso que torna o quadro tão interessante. É como se o humano, a figura humana, não pudesse se manifestar mais na pintura a não ser por indícios. Assim, Hockney cria um um jogo provocador entre presença e ausência na tela, problematizando algumas questões da arte moderna.

Hockney pintou várias outras piscinas, como no formidável "Day Pool with Three Blues", de 1978, também vazio de gente. Mas ele é sobretudo um artista da figura, dos maiores do século 20. Em outras telas que têm a piscina como tema, Hockney pintará pessoas boiando na água, saindo dela molhadas ou sendo observadas por outros --e com frequência essas pessoas são homens nus.

O curioso, porém, é que, no caso das piscinas de Hockney, não são exatamente as figuras que criam o sensualismo das telas, mas sobretudo as próprias formas, linhas, cores e pinceladas --como se o erotismo da pintura antecedesse o voyeurismo do objeto. Alguém poderia ver no grande "Splash" que salta da água uma espécie de gozo que transgredisse a severidade da tela ou exprimisse a satisfação culminante de realizá-la.

No mundo aquático de Hockney, estamos em outro lugar que as piscinas públicas e sociais. As suas piscinas falam de um mundo privado, tratam do desejo contemplativo e reservado, de um lugar onde a presença humana é escassa, distante ou se rarefaz no imobilismo, no silêncio, na água, na superfície problemática da pintura contemporânea.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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