Pensata

Alcino Leite Neto

31/08/2003

Uma hecatombe atingiu a França

"Hecatombe" foi como os jornais da França definiram o desastre provocado pelas altas temperaturas do verão no país. O substantivo não é exagerado nem sensacionalista. Devido ao calor que ultrapassou os 40 graus durante vários dias, morreram 11.435 franceses apenas nas duas primeiras semanas de agosto.

É um número gigantesco, que recorda as devastações provocadas pelas pestes medievais ou pelos piores terremotos. É também um número oficial, divulgado pelo Ministério da Saúde francês, que junto com o governo como um todo agora lida com a grave crise política suscitada pela catástrofe.

A tragédia francesa tem um caráter assustadoramente contemporâneo. Descobriu-se que aproximadamente 80% desses mortos eram idosos de mais de 75 anos (61% de mulheres), e dentre eles havia um vasto número de pessoas que viviam sozinhas e não foram socorridas por ninguém, nem mesmo por seus familiares, caso os tivessem.

Ao longo do pior período do calor, morreram 762 velhinhos por dia na França. Na última semana, cerca de 400 corpos de idosos permaneciam nos morgues sem que ninguém os reclamasse para enterrar. Outros estavam sendo sepultados pelo governo em covas simples, com identificação sumária, para que pudessem ser localizados nos dias seguintes por parentes. O que nem sempre ocorria, seja porque alguns dos idosos não se relacionavam com ninguém, seja porque os parentes não se interessavam por providenciar o enterro, cujos custos chegam a 2.200 euros (cerca de R$ 7 mil).

Em vista do número de idosos mortos, os debates na França deixaram de focar principalmente a questão da saúde pública e passaram a destacar a questão do abandono social dos velhinhos. Um "plano de mobilização" para a terceira idade foi lançado pelo primeiro-ministro, acossado por críticas e ataques vindos de todos os lados. Foi proposto que o país suprimisse um dia de feriado para reverter a arrecadação em ajuda financeira à terceira idade.

Reportagens nos jornais relataram as condições precárias em que vivem a maioria dos idosos na França, seja nos asilos, seja em suas residências, quando solitários. O modo como alguns mortos foram encontrados dias depois em seus apartamentos desleixados aproxima-se das cenas de um filme de horror.

O governo disponibilizou um número de emergência para pessoas que decidissem procurar por seus parentes. Alguns ligavam dos locais onde passavam as férias (julho e agosto são meses de férias no país) para saber se o serviço poderia dar notícias de um parente que deixara de atender o telefone --e que eles resolveram procurar apenas depois das notícias da calamidade. Outros pediam para o serviço ajudá-los a encontrar o pai ou a mãe que não viam há muitos anos, separados que estavam por vários motivos.

A crise, em suma, revelou que não apenas o sistema de saúde havia falhado no atendimento às vítimas do calor, mas sobretudo no socorro dos idosos. Mostrou também que há uma impotência ou indiferença generalizadas --desde o Estado aos indivíduos-- no que diz respeito ao suporte que precisam dar aos idosos.

Existem hoje 9,5 milhões de pessoas com mais 65 anos na França. Cifras otimistas indicam que, em 2010, o número deverá saltar para 10,4 milhões. Em 2050, serão 19 milhões, ou seja 28% da população do país.

Deste total, os de mais de 85 anos, principais vítimas do calor, são hoje cerca de 1,2 milhão. Em 2050, serão quase 5 milhões. Isso, sem falar nos velhinhos mais ou menos dependentes, devido a doenças, que são hoje 980 mil e serão 1,2 milhão em 2040. Para estes, alertou o jornal "Le Monde", uma pane de eletricidade durante o inverno (quando a temperatura pode chegar a menos de 10 graus negativos) seria catastrófico.

O "custo existencial" de cada idoso --para eles próprios, familiares ou para o Estado-- beira na França 2.000 euros mensais, em média. A falta de dinheiro é particularmente crítica para os velhos, acentuando a importância da ajuda pública e da solidariedade familiar para a sua sobrevivência.

Mas tudo na lógica político-econômica dominante parece contrariar essa necessidade do presente e, mais ainda, do futuro. O Estado do Bem-Estar Social faliu. Os sistemas de aposentadoria passam por reformas nos principais países, prevendo a crise que atingirá os caixas com pensionistas muito longevos. A época, além disso, é de empobrecimento generalizado, mesmo na Europa, e de um salve-se quem puder ultraindividualista.

É provável que homens e mulheres, tendo nesta época a chance física de viver mais tempo do que seus antepassados, experimentem no futuro a sua velhice não como uma vitória sobre a natureza, mas como uma constante e dolorosa luta contra o darwinismo socioeconômico que vai se instalando em todo o mundo.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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