Pensata

Alcino Leite Neto

08/09/2003

A beleza roubada pela internet

Quer saber se você é atrativo(a), bonito(a) ou "quente"? Coloque sua foto no site "Hot or Not", uma das novas manias da internet (www.hotornot.com). Ali, sem meias palavras, subterfúgios ou gentilezas, navegadores anônimos de todo o mundo na internet serão os juízes de seu potencial de atratividade física. O juízo é sumário e estatístico: o visitante do site dará rapidamente uma cotação de 0 a 10 à sua imagem.

As fotos tendem a ser informais e caseiras, como se os candidatos à avaliação coletiva não soubessem (ou preferissem ignorar) que as notas serão dadas apenas a uma imagem --e dispensassem de vez todos os efeitos fotográficos de iluminação ou composição que tanto colaboram para o embelezamento dos modelos.

Você pode ver as fotos por distribuição aleatória ou selecionar por sexo e idade, a partir dos 18 anos até os bem mais velhos. As imagens vão se sucedendo à medida que clicamos a nota. A foto que recebeu a cotação vai para o lado esquerdo do site, em formato menor, junto com a nota que você deu e também o índice médio das avaliações recebidas.

No centro da tela, surge então um novo rosto a ser avaliado --e assim por diante. A progressão monótona do jogo vai aos poucos dando às imagens um ar patético e compassivo, com todos aqueles olhares clamando por nossa avaliação, por nossa aceitação, por nosso desejo.

Surgem jovens estudantes à porta de escolas, às vezes latinos, às vezes orientais, ora praticando esportes, ou de férias, sentados num bar, tomando um drinque ou um sorvete; surgem balzaquianas sentadas languidamente na sala de estar ou homens maduros imitando jovialidades; aparecem rapazes sem camisas, garotas com batons fortes que acentuam os lábios ou com blusas apertadas que fazem sobressair os seios; certas vezes são imagens iguais às das carteiras identidades, outras vezes, parecidas às fotos de álbuns de formatura ou de debutantes; algumas meninas lançam olhares sedutores, outras tentam convencer com sua candura.

As mulheres, que devem ser a maioria dos que votam nos homens, parecem sempre encontrar nestes atrativos insuspeitos, raramente baixando demais a cotação masculina. Os homens, não importa a que faixa etária pertençam, recebem notas médias generosas, variando entre 7 ou 8, por mais que um dos rapazes nos pareça muito feioso.

Os homens, por sua vez, taxam, sem culpa, as desengonçadas com as notas mais baixas. Uma jovem colegial estava com média 5.1 de atratividade. Uma garota com estilo "vamp" não conseguiu ultrapassar os 6.4 pontos. A dengosa gordinha que receberia 10 em simpatia, não passou dos 4.5 em sedução física.

Não é, porém, essa "franqueza anônima" das cotações o mais interessante do "Hot or Not", nem o seu voyeurismo infame ou mesmo a coragem dos participantes em submeter sua foto ao juízo automático dos navegadores da internet.

O mais curioso do site é que a sucessão das imagens acaba por resultar no nosso imaginário numa espécie de aceitação progressiva e involuntária do tipo físico comum, mediano, flagrado numa foto doméstica, com sua pose banal, sua roupa de circunstância e na sua variedade multicultural --ou seja, tudo aquilo que contraria o ultra-idealizado estilo publicitário que ainda tenta definir os critérios atuais de beleza e sensualidade neste momento de vasta ruptura cultural.

"Alguns são feios, outros bonitos, mas nenhum de nós poderá representar um ideal de beleza, porque somos muitos e heterogêneos, como os desejos da infinidade de pessoas que nos olham" --esta poderia ser a conclusão do visitante do site, depois de tanto tempo "folheando" as imagens.

É um paradoxo que a internet, sendo por si só um mundo à parte de comunicação, informação e divertimento, não consiga constituir "transcendentes" --ou valores universais-- de beleza ou de qualquer outro ideal, como fez um dia o cinema e mesmo a televisão. Ao contrário, são a variedade do próprio mundo e a relatividade do juízo que se impõem e se consagram por meio da rede universal e imanente de computadores.

A revolução dos blogs

Os brasileiros adultos temos muitas vezes uma visão depreciada dos blogs, essa nova tendência da internet. Trata-se porém de um fenômeno que deveria merecer maior atenção dos profissionais da comunicação. Blogs não são apenas diários de adolescentes e desocupados, embora isso ocorra com frequência.

Há numerosas experiências de outros modelos de blogs, dedicados à política, à crítica cultural e também à difusão de notícias, o que leva a crer que aos poucos se está constituindo um novo meio de informação, que vai angariando cada vez mais leitores entre os internautas, sobretudo os mais novos.

É como se estivesse ao alcance de cada sujeito a possibilidade de fazer a sua própria mídia. O "blogger" é ao mesmo tempo um editor, um redator e às vezes um repórter, para usar as figuras tradicionais do jornalismo. Ele vasculha, conforme o tipo de blog que mantém, as notícias e os comentários existentes na internet, os copia para a sua página, acrescenta a sua própria notícia ou o seu comentário e, por fim, permite que os leitores participem com outras informações ou análises.

Jornalistas de várias partes do mundo estão adotando o blog como mídia alternativa, por suas vantagens de rapidez, penetração e interatividade. Para os usuários, um blog será tanto mais relevante e confiável quanto mais sério for o seu mantenedor e mais pertinência e inteligência houver em suas reflexões.

O jornal "The Guardian", um dos principais da Inglaterra, foi até agora o que mais atenção deu ao fenômeno, que coloca em debate vários aspectos da imprensa. Chegou mesmo a realizar o seu próprio blog. Quem quiser se informar mais sobre o assunto, pode consultar a seguinte página do "Guardian" na internet: www.guardian.co.uk/weblog/special/0,10627,744914,00.html

Nela, pode-se encontrar uma boa explicação para o fenômeno e links para alguns dos melhores blogs do mundo em língua inglesa, segundo o "Guardian".

Mudando de assunto

Encontro no excelente "Cartas ao Mundo", o livro com a correspondência de Glauber Rocha organizada pela crítica Ivana Bentes para a Companhia das Letras, uma carta do antropólogo Darcy Ribeiro dirigida ao diretor.

É uma das missivas mais notáveis do livro. Nela, o antropólogo reflete sobre João Goulart e o golpe de 64, a pedido de Glauber, que pretendia realizar um filme sobre o presidente.

Datada de 31 de maio de 1972, a carta permanece bastante útil para o Brasil atual, particularmente quando Darcy Ribeiro discorre sobre o modo como a conjuntura obriga um líder político a substituir seus ideais. Não resisto à idéia de transcrever este trecho (pág. 374):

"Quanto ao Jango, a primeira observação seria a de uma aparente dualidade entre o que ele é, pela vida que se construiu de fazendeiro-invernista bem-sucedido e rico, e seu desempenho de político reformista. Mas a simples suposição dessa dualidade traz implícita a idéia de que as personalidades são entidades inteiriças e coerentes, o que é muito duvidoso. Mais verdadeira é talvez a observação de que os homens atuam na vida social, e particularmente na arena política, muito mais de acordo com as circunstâncias --as conjunturas, como se diz-- do que com o ideário que acaso tenham. Todos nós estamos permanentemente nos representando a nós mesmos, representando para platéias indiferentes ou coniventes, que tanto nos coagem com suas expectativas que interiorizamos como se projetam em nós.

"É óbvio que há lugar para graus maiores ou menores de autenticidade nessas representações. O homem comum se constrói com as projeções externas interiorizadas, mas o faz de forma tão genuína que chega a convencer-se de que são suas todas as suas crenças. Um cínico gostaria de construir-se seletiva e racionalmente, escolhendo aqueles traços cuja exibição fosse mais vantajosa em cada situação. Mas nem mesmo o homem comum, ingênuo, escapa totalmente de si próprio, convertendo-se num reflexo mimético das experiências alheias, porque a própria singularidade de sua experiência existencial acaba por tipificá-lo. Nem escapa o cínico, que tratando de intencionalizar sua imagem aos olhos dos outros, acaba por ver-se, a si próprio, com a visão alheia, como se ele realmente fosse o que pretende parecer.

"Para que tanta confusão? O que quero dizer é tão-somente que um homem não exprime, no poder, a sua ideologia pessoal, mas a conjuntura política que o ascendeu. É claro que deve haver certa compatibilidade entre o papel representado e a personalidade que o encarna. Mas, via de regra, as personalidades são suficientemente flexíveis para se acomodarem aos papéis que ordinariamente são chamadas a viver."
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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