Pensata

Alcino Leite Neto

14/09/2003

A democracia não tem fim

"Voyous", do filósofo francês Jacques Derrida, talvez seja a principal obra de filosofia política publicada até o momento que tem no seu horizonte os acontecimentos trágicos de 11 de Setembro, o consecutivo avanço da "doutrina Bush" e a crise internacional que adveio de tudo isso.

"États voyous" é a versão em língua francesa da expressão inglesa "rogue states", que serve na política americana para designar os países que os Estados Unidos julgam suspeitos de patrocinar o terrorismo e desenvolver, contra as leis internacionais, armas nucleares e biológicas. No Brasil, em geral, a imprensa traduz "rogue states" por "Estados delinquentes".

A expressão não começou a ser adotada por George W. Bush. Ela remonta à era Clinton. E é de todo modo bastante perversa, no plano político, apesar dos argumentos americanos. "A rogue state is whoever the United States says it is" (Um Estado delinquente é aquele que os EUA dizem que é), afirmou certa vez Robert S. Litwak, que fez parte do governo Clinton. A frase de Litwak confirma o quanto há de arbitrário e ideológico nessa qualificação.

Toda a reflexão de Derrida vai culminar numa crítica a idéia de "rogue states", no final do livro. Antes, porém, é a própria democracia o seu objeto de análise.

"Voyous", lançado neste ano pela editora Galilée, é uma obra complexa e difícil. Tanto mais que Derrida pensa a partir do "desconstrucionismo", a corrente filosófica que elaborou desde os anos 60 e que se caracteriza por destrinchar e desmontar certos conceitos do pensamento ocidental e a própria razão ocidental em termos gerais.

O livro consiste em duas longas conferências, no volume tratadas como "Dois Ensaios Sobre a Razão" --aliás, o subtítulo da obra. Haverá sempre muito de contestável na reflexão de Derrida, mas sua proposição de uma "democracia por vir" é bastante interessante (ao menos para um leigo em filosofia política, em filosofia e em política, como este colunista).

Derrida é um democrata extremado. A uma concepção fixa da democracia, cujos princípios já estariam determinados, o filósofo contrapõe a idéia da democracia como processo, como algo que produz sua própria diferença no tempo, pois está sempre inacabada, sempre por se fazer.

É esse fator de inacabamento permanente da democracia que permitiu por exemplo que os direitos dos negros ou o direito de voto das mulheres, antes sonegados à lógica das democracias ocidentais, passassem a fazer parte dela depois.

Desse modo, a democracia é conceito livre, não predeterminado nem fixo, mas um desenrolar contínuo da própria idéia de democracia (como uma "promessa" contínua), o que possibilita que ela vá abarcando tudo que lhe é heterogêneo, dissimétrico e diferente. Até o ponto em que a democracia pode ser ameaçada por sua própria liberdade, "suicidária" que ela também é, como no caso de uma eleição democrática que elegesse um antidemocrata (o que quase ocorreu na França com Le Pen, em 2002).

Liberdade e igualdade são os fundamentos da democracia, sim. Mas a liberdade não pode ser medida. Não podemos dizer a um sujeito: esta é a sua cota de liberdade --e pronto. A única medida da liberdade é o incomensurável, diz Derrida, apoiando-se em seu amigo, o filósofo Jean-Luc Nancy. A cota de liberdade está sempre em aberto.

E "a igualdade não consiste numa comensurabilidade dos sujeitos com relação a uma unidade qualquer de medida. Ela é a igualdade das singularidades na incomensurabilidade da liberdade" (pág. 77). Isto é, somos iguais uns aos outros não por direito natural, por proporção, distribuição ou mérito, mas porque compartilhamos da mesma "condição incondicional" da liberdade.

A interpretação de Derrida é um verdadeiro golpe de ar fresco no raciocínio político contemporâneo, que costuma achar que a democracia já vem toda pronta e empacotada e basta adotá-la. Sendo processo, a democracia é ao mesmo tempo uma conquista contínua, diante do incomensurável.

É certo que Derrida está falando desde a França, desde o mundo desenvolvido, onde os direitos individuais já estão garantidos e uma certa igualdade econômica foi assegurada aos cidadãos. No Brasil, ainda carecemos desses elementos básicos. Carecemos até mesmo de uma amplíssima democratização da idéia de liberdade.

Mas as reflexões do filósofo são importantes, independentemente de nossa situação particular e da de boa parte do mundo subdesenvolvido e em desenvolvimento, pois elas defendem uma idéia dinâmica, ativa e aberta de democracia --e não uma idéia redutora, passiva e reguladora.

O pensamento de Derrida é relevante sobretudo para esta época em que ocorre uma globalização da economia e da cultura. O que significa uma democracia política global nesse panorama? Por que os Estados Unidos se fazem de guardiões dos princípios democráticos, mas recusam a partilhar da legislação do Tribunal Penal Internacional, já aceito pelos principais países do mundo? Por que as cinco nações com poder de veto na ONU não aceitam democratizar as decisões dessa instituição internacional?

É para questões como essas que converge a reflexão de Derrida. Não haveria algo de "voyou", de "delinquente", no abuso de poder que está nos fundamentos da soberania desses Estados hegemônicos e até da própria Carta das Nações Unidas, quando esta serve para assegurar a razão do "mais forte"?

Colocadas no plano internacional, as idéias de Derrida são bastante úteis para se pensar uma efetiva democratização da ordem mundial contra iniciativas dos "mais fortes" de reduzir a idéia de democracia a um pretexto autoritário ou colonial, a um recurso que convida à intolerância e à animosidade.

A democratização do Islã

"O Islã é a única cultura religiosa que teria até agora resistido a um processo europeu (greco-cristão e mundializador) de secularização, então de democratização, e então, no sentido estrito, de politização", escreve Derrida em "Voyous" (págs. 54-5).

A questão da democratização do Islã é um ponto crucial na atualidade e ocupa destaque no livro do filósofo. O simples fato de se referir a ela demonstra que Derrida não está se colocando fora da "democracia (ocidental)" ao criticar a razão de Estado dos países democráticos.

Ele chega mesmo a conceber duas tarefas, uma teórico e outra política, que deveriam ser evocadas na abordagem da questão islâmica.

A primeira tarefa seria "um imenso, urgente e sério trabalho histórico" sobre o que autoriza ou não autoriza na herança corânica a tradução de um "paradigma propriamente democrático".

A segunda seria "fazer tudo" para ajudar a emergência de uma subjetividade laica no mundo islâmico e "uma interpretação da herança corânica que nela faça prevalecer, desde dentro, as suas virtualidades democráticas, que não são sem dúvida menos legíveis ali a olho nu do que eram no Antigo e no Novo Testamentos".
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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