Pensata

Alcino Leite Neto

28/09/2003

Um governo nacional e internacionalista

A estratégia diplomática do governo petista é mais organizada do que se imagina, como mostrou reportagem de Eliane Cantanhêde e Kennedy Alencar, na "Folha de S. Paulo" (21/9/2003). Talvez seja mesmo tão organizada quanto a propaganda interna do governo, cuja planificação meticulosa e abrangente não se via no gênero desde o regime militar.

Não é à tôa que o governo tem tentado fazer do carro-chefe de sua propaganda local --o programa de combate à fome-- uma campanha internacional, como pregou Lula em seu discurso na ONU. Este é um governo nacional-internacionalista, com o perdão do paradoxo.

Seu nacionalismo (uma das ênfases da propaganda oficial) não contradiz o interesse em ampliar as trocas do Brasil, em todas as direções. Pelo contrário, é o nacionalismo que justamente dá forças à política internacional, ambos embalados pelo otimismo, à esquerda e à direita, fora e dentro do país, com os primeiros meses da gestão Lula.

Nesse sentido, não é um nacionalismo reativo, de auto-centramento, mas expansivo, talvez até mesmo expansionista, muito confiante numa idéia já antiga de que o Brasil tende a se tornar uma potência mundial.

E o seu internacionalismo, pós-terceiro-mundista, tem a característica de pensar as relações atuais como uma luta entre nações ricas e pobres, ou do Norte contra o Sul, na terminologia européia --um raciocínio geopolítico que, se por um lado coloca o Brasil entre os países pobres, por outro o situa na liderança das reivindicações da América Latina (o que torna esse raciocínio mais pragmático do que ideológico).

A grande dificuldade, porém, para atualizar o destino manifesto do Brasil nos dias que correm é que já estaríamos entrando na reta final para a instalação da Alca, a zona de livre comércio das Américas, na qual a dominância dos Estados Unidos seria inevitável.

Publicamente, o governo brasileiro parece estar adiando as discussões da Alca, como se estivesse ganhando tempo para reforçar a capacidade de negociação do Brasil. Multiplica as frentes de ação, troca e influência com países próximos na escala do desenvolvimento econômico, como Índia, Rússia e China --retomando certa linha-mestra da diplomacia dos anos 60/70.

Encara a liderança das nações do G-21 e prega a equidade nas relações comerciais. Anuncia de tempos em tempos a redinamização e a ampliação do Mercosul. Acentua simpatias com países europeus, negocia com Cuba e bajula a Venezuela, num desafio aos EUA. Tudo isso pode ser bastante útil, sem dúvida.

Mas é inevitável que, por ocasião da assinatura dos primeiros acordos da Alca, planejada para 2005, o Brasil tome lugar à mesa de negociações, diante dos EUA, com menos cacife do que gostaria, embora, ainda assim, no papel de interlocutor central dos americanos.

A Alca dependerá prioritariamente de um pacto EUA-Brasil. Depois da derrocada portenha, os americanos parecem ter desistido de "inventar" uma Argentina que servisse de contrapeso às aspirações geopolíticas brasileiras.

O governo Kirchner, além disso, parece mais apressado em restaurar psicologicamente a dignidade interna, dando sinais de independência em relação aos mercados financeiros e ao FMI, do que em se precaver contra as "anexações" econômicas vindouras, e de fundo, pelo Brasil e pelos Estados Unidos.

Numa escala miúda, os brasileiros também terão o seu Canadá no futuro. Os EUA deverão se conformar com a predominância do Brasil na América do Sul, dentro de certos limites, a fim de viabilizar a Alca e seu mercado de 850 milhões de consumidores, como calculam os relatórios.

É provável até que, no caso de uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, decidam-se por apoiar a criação de um assento fixo para o Brasil, satisfazendo antiga reivindicação do país e do Itamaraty, mas apenas depois de assegurarem a assinatura brasileira nos tratados.

Feitas as contas, e apesar de certa postura anfíbia do Brasil, este é o país que pode ser o melhor parceiro dos EUA na América do Sul, não só por suas características econômicas, mas também socioculturais.

Fora que o Brasil pode servir, como já tem servido, como um exemplo, um interlocutor e um conselheiro de peso junto a nações latino-americanas por acaso "rebeldes" à política dos EUA e do FMI.

Tudo isso representa um quadro diplomático sem mais turbulências do que as existentes. A história porém é feita do imprevisível. Não se pode descartar uma reação em cadeia à Alca na América Latina, provocada pela pauperização do continente e incentivada por esquerdas ou populistas, com a consequente intensificação do antiamericanismo, que poderia arrastar o Brasil na onda.

Até o momento, porém, o governo Lula é o melhor que os americanos jamais poderiam conceber para o Brasil, surpreendentemente, com sua mescla de continuísmo, pragmatismo e reformismo. E nada, ou muito pouco, nas pretensões atuais do Brasil, parece de fato contrariar as projeções dos EUA ou o destino da Alca.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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