Pensata

Alcino Leite Neto

19/10/2003

Uma Cuba Libre, por favor!

Um amigo conta que chegou num bar da moda em São Paulo, dias atrás, e pediu:

_ Uma Cuba Libre, por favor.

_ Como? _perguntou o jovem barman.

_ Uma Cuba Libre!

O rapaz não entendia o pedido. O amigo falou mais alto:

_ Quero uma Cuba... Libre.

_ O sr. quer uma Cuba e mais o quê?

_ Apenas uma Cuba Libre.

_ Nós só temos Cuba.

_ Como é isso?

_ Rum e coca.

_ Mas isso é Cuba Libre! _disse o amigo.

_ Se é, eu não sei. Aqui, chamamos de Cuba.

O barman fez então a sua Cuba, que não era outra senão a velha e boa Cuba Libre, na receita tradicional: rum, Coca-cola, gelo e limão. Para o amigo, contudo, o drinque virou um copo de veneno. Ranzinza, não conseguia engolir a idéia de que a Cuba Libre tivesse seu nome abreviado para Cuba, apenas.

_ O que fizeram com o "Libre"? O mundo está me traindo! _reclamou ele a noite toda, até a embriaguez.

Não, o amigo não é um castrista. A Cuba Libre, aliás, e é bom repetir, não ganhou este nome por causa da Revolução Cubana (1959). Segundo o anedotário dos drinques, surgiu em Cuba, sim, mas na época da guerra de independência da ilha, travada entre 1895-1898 contra a Espanha, em que os EUA apoiaram os cubanos.

Contam que, num bar do Bairro Velho de Havana, um oficial independentista pediu que misturassem para ele rum, Coca-cola, gelo e um quarto de limão. Os soldados que o acompanhavam gostaram da idéia e encomendaram o mesmo. Todos juntos ergueram um brinde, gritando o brado da Independência: "Cuba Libre!". O nome pegou.

Simbolicamente, a mistura das duas bebidas emblemáticas de Cuba (o rum) e dos EUA (a Coca-cola, criada em 1886 e industrializada a partir de 1893) sintetizava a união entre os dois países na luta pela independência cubana. Mais tarde, os EUA praticamente ocupariam Cuba.

Ao longo do século 20, o drinque se universalizou. Mas em nenhuma das décadas do século passado a Cuba Libre talvez tenha sido tão consumida quanto na de 60, logo após a chegada de Fidel ao poder.

Foi quando surgiu o mal-entendido, que para muitos perdura até hoje, de que o nome do drinque faria referência à Revolução de 1959. Dependendo de quais ingredientes se vá usar, não há porém bebida mais "oposicionista" à Fidel: além da Coca-cola ser o refrigerante "imperialista" por excelência, sabe-se que a maior fábrica de rum do mundo, que não é sediada em Cuba, mas nos arredores no Caribe, é uma inimiga feroz do regime castrista.

Bebida na ilha, onde seu consumo parece ser bem menor do que o dos "mojitos", a Cuba Libre pode no entanto ser tomada sem medo de o freguês estar vendendo a goela aos reacionários. O rum é o da fabricação local (há mesmo um museu dedicado a esta bebida em Havana). E, além disso, Fidel acabou inventando a sua própria Coca-cola: a Tropicola.

Ainda aparecerá um historiador que nos contará a emocionante história geopolítica das bebidas, dos drinques e dos refrigerantes.

Mas voltemos ao amigo. Ele vem de um tempo em que "liberdade" era uma palavra bastante forte. Bastava pronunciá-la, e um raio parecia brandir sua força no céu. Não havia liberdade política no Brasil (era a época da ditadura militar). Não havia liberdade sexual no mundo. Guerras de libertação se faziam pelos cantos da Terra. Psicodélicos tentavam se libertar das amarras mentais. Existencialistas repetiam Sartre, que ninguém mais lê: "Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre".

Hoje, "liberdade" é um termo fraco, burocrático e acessório, que se acresce ao discurso um pouco para dar ênfase a outros conceitos. Em geral vem embalada num pacote politicamente correto: "liberdade, justiça, democracia.". Será que somos mais livres do que nossos antepassados e por isso não nos importamos tanto com a liberdade, no sentido forte? Talvez não.

O trabalho escravo ainda vigora em várias partes do mundo, inclusive no Brasil. A miséria ainda constrange milhões de pessoas a reduzirem sua autonomia, ou simplesmente a suprimirem. A liberdade política não se universalizou.

Nas sociedades prósperas, os direitos civis passam por sérias ameaças, motivadas e apoiadas pelo pânico com o terrorismo e a violência. O desemprego e a crise econômica espalham sentimentos de insegurança e submissão. Interiorizamos tão bem a lógica econômica capitalista, que temos dificuldades para entender o ócio, que se transformou em lazer administrado. Religiões e seitas proliferam, aguçando as táticas de cerceamento, agregação e controle.

O individualismo contemporâneo privilegia publicitariamente a auto-proteção, o sucesso calculado e a tranquilidade presente e futura, enquanto um grande número de sujeitos mergulha em estados depressivos complexos, em que a frustração abre as portas a novos estados de dependência psicológica e médica. Terapias de todo tipo tentam a todo custo nos livrar da angústia de sermos absolutamente livres, desenvolvendo mais mecânicas de adaptação.

No plano cultural, vivemos no mundo das convenções mais esmagadoras, e somos incapazes de tolerar, entender ou desejar novidades que transtornem nossos consensos e abram novas perspectivas. Mesmo porque o não-convencional exige um bom esforço de entendimento, e a preguiça mental vai se tornando regra, num mundo em que grande parte da energia é gasta em cuidados com a aparência física, social, profissional ou acadêmica. Estudamos, lemos e escrevemos burocraticamente, para cumprir metas profissionais ou encher o tempo _e não para aprender a ser livres ou difundir o gosto pela liberdade.

Muitas Cubas Libres, por favor!


Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca