Pensata

Alcino Leite Neto

10/11/2003

Elites do Brasil e do PT

A maneira como uma parte da elite empresarial e financeira do Brasil foi aceitando discretamente a inevitabilidade do PT na Presidência, com ele estabelecendo laços bem antes das eleições, ou como uma parte ainda maior dessas elites adaptou-se cordialmente ao governo dos petistas, diabolizados no passado e cuja ascensão ao Planalto se tentou evitar várias vezes, a qualquer custo _eis um dos acontecimentos mais interessantes das últimas décadas no país e que deverá merecer no futuro um estudo reunindo não apenas a análise de historiadores, economistas e cientistas políticos, mas também de sociólogos e antropólogos.

O mesmo estudo deveria examinar também o reverso da medalha: o modo como a elite petista negociou e tem negociado tão bem com as elites econômicas, brasileira e internacional, sem falar na elite militar, que o PT jamais menosprezou nem negligenciou, talvez por ser a cúpula do partido formada de nacionalistas ferrenhos e inclusive de ex-guerrilheiros, que sabem o peso de uma reação armada.

Sim, eis um acontecimento que, considerado em seu processo _longo, trabalhoso e trabalhado_ é bastante característico do modo brasileiro de resolver conflitos. Seria possível que acontecesse algo semelhante em outro país? A questão é pretensiosa _deixemos aos estudiosos.

Mas é provavelmente certo que, junto com a eleição de Lula, ocorreu, mesmo sem grande formalidade, um oportunístico e muito brasileiro pacto entre as elites econômicas e a elite do PT, num momento em que se percebia os riscos de uma crise aguda no conjunto da sociedade e na hora em que se viu como irremediável a chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder.

Mesmo banqueiros brasileiros, conta-se, preferiram enxergar em Lula, antes das eleições, um presidente menos "perigoso" que o candidato rival, José Serra, que apesar de apoiado por FHC parecia aos financistas como um homem de rompantes e com idéias próprias demais. Enquanto isso, os petistas eram recebidos com pompa nos birôs empresariais e nos salões chiques da alta sociedade, cercados de socialites que começaram a adotar um estilo PT-chique e até resolveram militar em empreitadas assistencialistas.

Aspirando à governabilidade, o PT, já bastante desfigurado em relação aos seus princípios de fundação, deixou-se de certo modo moldar pelas exigências das elites, enquanto elas próprias se aclimatavam às características e projetos do novo grupo político.

O resultado foi que o partido, ainda que não explicitamente, passou a se apresentar como solução à possibilidade de uma ruptura social no país _e pela primeira vez na história brasileira, o conservadorismo, para evitar o pior, teve que abraçar a esquerda e beijar a mão de um presidente que não provinha das elites econômicas.

Com o PT no poder foi adiado sine die um conflito aberto no Brasil, uma vez que o partido é o único capaz de negociar com a parte baixa da sociedade, onde aliás ele tem origem, e os movimentos sociais, com os quais sempre teve interlocução privilegiada.

Além disso, a figura de Lula tinha e tem o mérito de resolver a questão da identidade dos pobres e excluídos com o poder. Lula é um modo de oferecer no discurso e na atitude respostas às demandas populares, num país tão desigual economicamente, sem no entanto levar o populismo para a gestão pública.

O longo tempo de militância e campanha, que lhe permitiu transitar em inumeráveis esferas da vida pública, além das sucessivas derrotas nas eleições presidenciais, que o deixaram habilitado a neutralizar antipatias, também foram dando a Lula grande maleabilidade política, até o ponto de transformá-lo numa espécie de mito domesticado pela convivência e pelo hábito, sobre o qual agora se projetam pacificamente as aspirações nacionais de diversos tipos.

As atitudes esquizofrênicas do governo petista provêm aliás dos ajustes sucessivos que este faz nos seus "acordos" com as várias forças sociais que o sustentam _como no episódio em que Lula na África regurgita o FMI, assim enfatizando sua imagem de nacionalista e esquerdista, enquanto Palocci negocia aqui tranquilamente com o Fundo Monetário, deste modo tranquilizando o mercado.

É que o poder em Brasília, herdeiro de certa forma das tradições de organização do PT, vem sendo exercido na verdade como um triunvirato, cada um dos dignitários respondendo conforme o interlocutor: Lula atende ao nível simbólico primordial, José Dirceu responde sobretudo ao nível burocrático-político e Palocci ao nível econômico. De quando em quando falam todos em uníssono, às vezes de modo dissonante, mas estão sempre preparados a se acordarem sobre os fatos e as decisões, sem ferir em demasiado as susceptibilidades alheias, movidos por surpreendente pragmatismo.

Fala-se da inexperiência do PT na governança, mas o que dizer da máquina tentacular que estão montando no aparato estatal e do maquiavelismo que tem inspirado os seus planos para as eleições de 2004, enquanto postergam suas promessas da campanha?

O PT nunca foi um partido messiânico, mas imaginava-se que tivesse um projeto de Brasil. Talvez tenha, mas isso foi por hora engavetado. À elite petista interessa muito mais, hoje em dia, pensar o poder na extensão do tempo das eleições, cultivando o reformismo do partido e praticando um modesto continuísmo, mesmo à revelia das bases esquerdistas (mas elas mesmas já em ritmo de adaptação), enquanto promete para o país a chegada lenta e gradual de um futuro mais auspicioso _talvez num próximo mandato.

Evoquei os antropólogos. Pois bem. É perceptível que a elite petista abandonou o discurso da luta de classes ou assemelhados, bem como outras idéias belicosas, por uma visão unitarista da vida no país, uma visão menos conflitiva e mais miscigenada, menos austera e mais cordial, menos programática e mais brasileirinha, como se percebe nos discursos e anedotas do presidente Lula. De um certo modo, o PT vai substituindo o seu projeto de reinvenção política do Brasil pela adoção das mais antigas ideologias da identidade nacional e das mais vetustas fantasias de auto-estima.

Também isso é resultado, embora não pareça, do pacto político do PT com as elites, dentro de um plano mais amplo que a história parece nos ter reservado e que, esperemos, um dia os estudiosos saberão descrever melhor do que jamais conseguirá este colunista.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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