Pensata

Alcino Leite Neto

23/11/2003

Velhos e novos Golberys

A ampliação da capacidade militar da América do Sul e a formação pelos países deste continente de Forças Armadas comuns foi sugerida há poucos dias pelo ministro José Dirceu em palestra a empresários brasileiros e latino-americanos. Ele pensava sobretudo na utilidade dessas forças para proteção da área amazônica, que na sua opinião tem chances de ser ocupada militarmente pelos Estados Unidos.

A previsão parece remeter a filmes de ficção científica, mas partiu de um homem de Estado que não costuma gastar à tôa as suas palavras.

Por incrível que pareça, a idéia de Dirceu repete, no que se refere à Amazônia, teses geopolíticas muito em voga nas casernas no tempo do regime militar e mesmo antes. Não foi apenas por desenvolvimentismo que os militares mandaram construir a frustrante Transamazônica nos anos 70: a rodovia visava abrir rotas de ocupação e vigilância no vastíssimo matagal cobiçado internacionalmente.

A única novidade do raciocínio de Dirceu é pensar a proteção da região amazônica como uma cooperação entre países latino-americanos contra o grande irmão maldoso do Norte. Outrora, nos tempos militares, vigoravam princípios menos cooperativos com os vizinhos (exceto, claro, no combate à subversão), e os EUA eram um aliado respeitoso diante da praga comunista propagada pela URSS.

Apesar de ter afirmado que a idéia de uma nova era de investimentos militares na América Latina era unicamente sua, e não do governo, é muito difícil crer que Dirceu não tenha soprado a sugestão nos salões privados do Planalto. E é provável que ela seja compartilhada pela cúpula do poder petista, com seu bolivarismo recalcado.

"Não parece, pois, razoável temer neste extenso arco fronteiriço de que Manaus é o centro geográfico (.) a eclosão súbita de um conflito ou o desencadeamento de forças (.). Mas, por outro lado, a penetração mais ou menos dissimulada, a coberto de nosso indiferentismo e do abandono em que deixamos aquelas paragens, é coisa que bem se pode admitir para breve."

Não, não foram essas as palavras de Dirceu para os empresários, mas são as de Golbery do Couto e Silva (1911-1987), escritas em 1952. Elas estão no livro recém-lançado "Geopolítica e Poder" (editora UniverCidade), que reúne escritos e palestras do general, com esclarecedor prefácio do jornalista Elio Gaspari.

É um livro importante para os que se interessam pelos conceitos e até pelas fantasias da geopolítica. As idéias de Golbery praticamente sintetizam o pensamento brasileiro na disciplina e deixaram marcas fundas nos militares nacionalistas e/ou de direita (pois sempre há os de esquerda, sobre os quais se fala menos, talvez por serem minoritários).

O pensamento do general quase nada teria hoje para se indispor com os fundamentos da doutrina Bush, embora o tema do terrorismo não compareça com destaque no livro, nem a questão do Islã seja nele determinante _ainda que Golbery dirija mais de uma vez seus ataques ao líder egípcio Gamal Abdel Nasser (1918-1970), por seu "antiocidentalismo ressentido" que estaria mobilizando um "fanático nacionalismo árabe, que ameaça convulsionar toda aquela região e não se tem demonstrado arredio a acordos com os próprios comunistas" (pág. 137).

Golbery é um defensor ardoroso do que ele chama de civilização ocidental e cristã, a qual ele contrapõe ao comunismo da URSS e da China, os inimigos primordiais dos EUA nos tempos da Guerra Fria.

Para ele, o Brasil, por suas afinidades no plano da geografia, da formação nacional e da civilização com os Estados Unidos, deveria manter relações privilegiadas com os americanos, até mesmo ao ponto de emprestar suas fronteiras para conter o avanço comunista.

"Se a geografia atribuiu à costa brasileira e a seu promontório nordestino um quase monopólio de domínio no Atlântico Sul, esse monopólio é brasileiro, deve ser exercido por nós exclusivamente, por mais que estejamos, sem tergiversações, dispostos a utilizá-lo em benefício de nossos irmãos do norte, a que nos ligam tantos e tão tradicionais laços de amizade e de interesses, e em defesa ao mesmo tempo da civilização cristã, que é a nossa, contra o imperialismo comunista de origem exótica" (pág. 43), escreve Golbery (em 1952).

A adesão aos EUA não funciona apenas como ideologia, mas como realismo político no pensamento de Golbery, que constata a dependência econômica do país e da América Latina. O que não o impede de imaginar que o Brasil estaria fadado a ter um destino forte e singular no futuro do mundo, igual ao dos EUA no século 20.

Em certos momentos o texto de Golbery ganha tons apocalípticos e assume abertamente uma linguagem messiânica, como se fosse um clérigo protestante saído de um romance de Melville:

"Mas se o choque brutal se produzir afinal, sangrento, catastrófico, atômico, entre as duas gigantescas superpotências da terra, que se defrontam de um lado e outro do Atlântico, do Pacífico e do Ártico, poderá o hemisfério norte acabar mergulhando de todo em uma treva espessa de desesperação e miséria. E, se o Brasil subsistir em segurança neste gólfão excêntrico do Atlântico Sul, poderá bem ser destino seu recolher a herança de cultura de uma civilização portentosa que se tenha esvaído na loucura da guerra, cumprindo-lhe então, por sua vez, aquela missão histórica que tem cabido a muitos outros povos no evolver impassível dos séculos, em que todos são _já nos disse Lucrécio_ 'como corredores olímpicos passando de mão em mão o facho luminoso da vida'" (pág. 105, escrito em 1953).

A idéia de que o Brasil venha a se tornar uma potência não abandona o general, que assim escreve em 1980, em pleno governo João Figueiredo, ao definir o que seriam as prioridades do regime militar: "Saneamento e fortalecimento do setor econômico, melhor protegido contra pressões adversas provenientes do exterior e constituindo sólida infra-estrutura, tanto para a grandeza maior do Brasil-potência do século 21 como para o florescimento de uma sociedade mais justa na distribuição da renda, bem mais rica e menos vulnerável a desgastantes crises periódicas" (pág. 499).

E veja só: estas palavras até que não cairiam mal na boca de José Dirceu, este promissor Golbery do governo petista.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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