Pensata

Alcino Leite Neto

30/11/2003

Godard pop-político contra os neoconservadores

O diretor francês Jean-Luc Godard é frequentemente associado a um pensamento de esquerda no cinema e visto como um dos mais lúcidos críticos das formas de vida no alto capitalismo. Mas nem sempre e nem por todos sua obra foi encarada assim.

Na década de 60, no auge da revolução godardiana da linguagem cinematográfica, ele foi muitas vezes apontado como um diretor politicamente confuso, cujo irracionalismo impedia de ver os processos sociais concretos.

A antipatia que Guy Debord, o autor de "A Sociedade do Espetáculo", nutria por Godard, a quem ele dirigiu numerosos ataques, provinha em boa parte de constatação desse tipo. A crítica marxista italiana dos anos 60, que bebia em Gramsci e Lukacs, como o ótimo Guido Aristarco, também foi severa com o diretor francês.

O jovem Glauber Rocha também não ficou indiferente às contradições políticas dos primeiros filmes do francês, embora tenha preferido destacar entusiasticamente o caminho fértil que Godard abria ao cinema com a sua subversão estética.

Com efeito, nos anos 60, Godard representou uma verdadeira revolução não apenas para o cinema, mas para toda a arte. O impacto de seus filmes foi tremendo --principalmente na juventude intraquila daquela época. Foi tão grande a sua influência, e de um feitio tão diverso daquela que exercem hoje os artistas sobre os jovens, que chega a ser difícil descrever o que aconteceu.

A partir do cinema, um meio de ampla penetração e influência naquele momento (a televisão ainda não era tão forte), Godard conseguiu trazer para sua obra as preocupações existenciais e políticas das novas gerações numa forma inédita, que reunia a alta cultura e a cultura popular. Em seus filmes, conviviam, mesmo em conflito, Sartre e o rock, Matisse e a publicidade, Beethoven e a literatura policial.

Ocorria, pela primeira vez, a emergência do pop no cinema, com imensa liberdade de estilo, rompendo com todas as amarras da tradição cinematográfica e artística, inaugurando uma convergência de linguagens que transformariam para sempre as artes em geral.

Tratava-se de um cinema pop que, naturalmente, refletia as questões e preocupações de sua época e da Europa, mais intelectuais que as do pop americano do período, abordando então problemas como a marginalidade social nas grandes metrópoles, a libertação da mulher e sua exploração pelo star system e a publicidade, a ameaça da bomba atômica, a instalação de um mundo técnico-científico, as divisões políticas da Guerra Fria, a crise do humanismo, a expansão do consumo massivo, a emergência de novas mitologias urbanas não-tradicionais oriundas dos meios de comunicação de massa etc.

À medida que os anos 60 chegam ao fim e o radicalismo juvenil se acentua com a florescimento do movimento hippie, as manifestações mundiais contra a Guerra do Vietnã e a expansão do maoísmo na França, a obra de Godard também vai se politizando mais. Em 1967, ele realiza "A Chinesa", uma de suas obras-primas, em que descreve o fervilhamento político no meio estudantil parisiense, praticamente antecipando a revolta de Maio de 68.

Mas, ainda nesse momento, a política tem para Godard um caráter muito acentuado de slogan, como se a militância fosse ela própria uma espécie de mídia. E é justamente isso que lhe permite realizar a crítica dos jovens filhos de Mao em Paris, como se fizesse uma tragicomédia de costumes, sem aderir às mesmas idéias de seus personagens.

Godard, de fato, atravessou a década de 60, politicamente, como um nômade, sem assentar sua obra num terreno crítico firme, ao contrário do que ocorria com o marxista Michelangelo Antonioni e o comunista católico Pier Paolo Pasolini, outros dois ícones da arte naquela época.

Ora Godard passava apenas por um erudito poeta-cinéfilo, que implodia a linguagem cinematográfica e o bom-senso burguês como um Rimbaud redivivo. Ora tomava a feição de um herói camusiano, encarando a revolta como atributo existencial. Ora assumia o tom de um circunspecto leitor de Sartre, que refletia sobre a responsabilidade moral num mundo sem Deus. Ora encarnava o semiólogo crítico que questionava os signos e símbolos da contemporaneidade. Ora se transformava em sociólogo da vida urbana e dos novos comportamentos.

Certamente não seria preciso que Godard assumisse uma posição política clara --não estou aqui fazendo uma cobrança moral à sua obra formidável.

É contudo espantoso que ele tenha enfrentado em seus primeiros filmes tantos temas essenciais de sua época, com tanta agudeza, sem estar assentado no solo firme de alguma teoria política ou sem ter aderido a uma militância definida.

O que ocorreu foi que Godard, na verdade, ao transitar por tantas interpretações do mundo, estava buscando realizar um só objetivo: dotar o cinema mesmo de uma capacidade de reflexão inédita, liberando esta arte das convenções dramáticas para investi-la de uma potência de pensamento que em geral é atribuída ao ensaio, à teoria e ao grande romance --tarefa que já fôra tentada por outros, entre os quais, Eisenstein.

Assim escreve o marxista Guido Aristarco, em 1967: "Godard, mais que Astruc, é o cineasta que procura verdadeiramente alçar o filme ao plano do ensaio, seguindo aí, com resultados variados, o exemplo de Bresson, de Antonioni ou de Bergman. (.) Quando Godard define 'Viver sua Vida' (filme de 1964) como uma aventura intelectual e afirma ter filmado um pensamento em movimento, é ainda uma referência a Eisenstein (muito mais que ao manifesto de Astruc, do cinema-caneta), ao 'cinema intelectual' definido pelo grande soviético".

Os trânsitos temáticos e as hesitações políticas de Godard, de filme a filme, jamais colocam em xeque este seu interesse primordial. E pode-se dizer que ele conseguiu realizar seu objetivo. A revolução godardiana é em parte a culminância da destruição do filme clássico e em parte o ápice da criação de um novo cinema, que pretende produzir um outro modo de pensar o mundo com o que seria um novo instrumento de pensamento --o próprio cinema.

É certo que Godard faz tudo isso sem jamais abrir mão nos filmes de núcleos dramáticos essenciais (com atores, cenas e diálogos), os quais ele desconstrói e reconstrói intermitentemente.

Abrir mão dessas ferramentas seria cair na imagem de tipo abstratizante, vazia de mundo, formalista ou estritamente expositiva --o contrário do que pretende o diretor, e faz sua grandeza e singularidade, que é produzir um pensamento de tipo intensivo com a matéria específica do cinema: a imagem do mundo. Ou seja, não o mundo ele mesmo, mas o interstício problemático que separa o mundo da sua cópia.

Todo esse comentário tem como motivação a reestréia em São Paulo de dois maravilhosos filmes de Godard: "Tempo de Guerra" (Les Carabiniers, 1963) e "Made in USA" (1966). Um e outro não estão entre os preferidos da melhor crítica, que os considera obras menores de Godard, se comparados a "Alphaville" ou "Pierrot Le Fou". Talvez sejam, sim, mas confesso ao leitor que sou fascinado por ambos --e não vou conter aqui a minha admiração.

São os dois filmes de um período em que Godard ainda se preocupava com a desconstrução dos gêneros clássicos --e a miscigenação dos gêneros.

Em "Tempo de Guerra", o nome já diz, ele realiza uma ampla demolição do filme de guerra, inspirado pelo cinema de Rossellini. Em "Made in USA", uma de suas obras mais decidamente pop, ele convoca todos os gêneros, estilos e linguagens, do filme policial ao western, das histórias em quadrinhos à poesia, para contar a história de uma vingança política e sentimental.

Mas, se começamos com a política, vamos terminar com ela.

"Tempo de Guerra", apesar de seu comentário à irracionalidade da guerra, não é uma obra pacifista: é uma parábola sobre a idiotia política.

Enquanto evoca nas imagens a infância do cinema --citando Griffith e Jean Vigo--, Godard nos fala da impossibilidade da inocência em nossa época. Seus protagonistas não são heróis libertadores, mas seres ingênuos, ou alienados (para usar o termo antigo), um belo dia convocados a engrossar as fileiras reacionárias, o que eles fazem com toda selvageria.

Eles vivem a guerra como um sonho infantil de aventura e conquista, sem nunca se darem conta de que são joguetes de um pesadelo em grande escala. A progressiva deconstrução dos clichês do filme de guerra na mise-en-scène vai deslanchando no espectador um processo reflexivo que o leva a questionar não a guerra em termos gerais, idealistas, mas a sua própria condição concreta de espectador --ou seja, de idiota ou de joguete do espetáculo cinematográfico. Os protagonistas do filme não acordam jamais de seu sonho, vivendo-o até a tragédia, mas para que o espectador possa ele mesmo ser "despertado" de sua atitude passiva.

Em "Made in USA", com sua exuberância criadora à toda, Godard apresenta um complicado quebra-cabeças cujas peças são as forças e as ideologias políticas da época. É um momento conturbado da história do mundo e da França, o que torna o filme ainda mais difícil para o espectador atual, tamanho o número de referências a fatos daqueles anos 1966.

Por mais que se perca dessas referências, contudo, "Made in USA" sobrevive por sua extraordinária e patética exposição da impossibilidade da poesia num mundo adverso como o nosso --um dos temas mais frequentes no primeiro Godard. A cena final, do assassinato do personagem David Goodis, construída com versos de Paul Éluard, é certamente uma das mais belas do cinema moderno.

E aqui convido o leitor a assistir aos dois filmes e a descobrir ou redescobrir a liberdade, a juventude, a poesia e a audácia de Godard, o melhor antídoto a essa onda de conservadorismo que está tomando conta do gosto cinematográfico das pessoas --inclusive dos jovens. O que talvez seja reflexo do conformismo existencial, do conservadorismo político, da preguiça intelectual e do tédio emocional que, fora das salas de cinema, anda impregnando tanto as mentalidades hoje em dia.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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