Pensata

Alcino Leite Neto

08/12/2003

O canibal alemão

O caso do técnico de computação que devorou um engenheiro na Alemanha é assustador. Mas é também extraordinário e, mais ainda, inédito --daí as dificuldades da Justiça para julgá-lo.

Como definir a culpa do canibal, uma vez que o crime resultou de um acordo mútuo entre o reú e a vítima? Devemos acusá-lo de homicídio ou de colaboração no suicídio do outro? Vamos tratá-lo como um insano, mesmo se ele não apresenta qualquer distúrbio psíquico e tudo foi planejado racionalmente com a participação da vítima?

É impressionante que o canibalismo se manifeste assim numa sociedade altamente desenvolvida. Mais espantoso, contudo, não é o fato de um sujeito comer carne humana --já se ouviu falar de episódios parecidos nas últimas décadas. O extraordinário é a comilança ter sido consentida pela própria vítima. Ou seja, havia um desejo de comer o outro, e do outro de ser comido --e não estamos no campo das metáforas.

Talvez este seja o primeiro caso registrado na história humana de canibalismo consentido. O primeiro caso de canibalismo que não pode ser enquadrado como tradição ritual de uma coletividade (como foi entre certas tribos da América pré-colombiana), como consequência de uma escassez de alimentos (como ocorreu com aqueles famosos "sobreviventes dos Andes"), como manifestação de crueldade ou resultado da loucura.

Este episódio inédito de canibalismo contratualista complica a vida não apenas dos juízes e advogados, mas também a interpretação de psiquiatras, psicanalistas, sociólogos e antropólogos que por acaso queiram refletir a respeito. Os melhores dentre eles mereceriam ser ouvidos sobre esse fato, que é muito mais do que uma simples crônica policial.

É certo que a devoração só pôde ocorrer porque os envolvidos tinham confiança extremada na sua autonomia como indivíduos, como se para eles, no intuito de realizar seus desejos, de nada valessem os tabus sociais, os pecados religiosos, os constrangimentos morais e os impedimentos da lei.

Terrivelmente livres, eles, no entanto, em nenhum momento, parecem ter investido sua atitude de qualquer dimensão transgressora, fazendo da devoração um ato de rebeldia existencial ou de afronta ao mundo social.

Ao praticar o canibalismo, eles não se baseavam também em nenhuma doutrina, seita ou crença compartilhada por um e outro --a princípio queriam apenas realizar fantasias psicológicas mutuamente correspondidas.

Terrivelmente banais, o técnico de computador e o engenheiro planejaram tudo como se organizassem uma aventura sexual pequeno-burguesa de fim de semana, com a ajuda da internet, seguindo as conveniências e as comodidades da época.

Uma oferta foi lançada num chat na rede, um outro a fisgou, um encontro foi marcado, os dois se reuniram numa casa, transaram --e começou enfim o ritual.

Ritual ao mesmo tempo de características muito remotas e muito contemporâneas, pois foi precedido de um contrato informal entre indivíduos livres, acompanhado de um registro voyeurista em vídeo e confirmado por uma prova testamentária da vítima, onde ela expressava sua vontade de ser devorada.

Depois da transa, a vítima teve então o seu pênis extirpado, o qual foi servido para os dois amantes. É sem dúvida desagradável imaginar a dupla sentada à mesa, um dos dois exangue, ambos tentando mastigar um falo humano, a peça de carne por onde começou o banquete.

Mas é justamente aí, neste momento, que entramos na esfera do mito. A cena, por terrível que seja, repete a intensidade ritual de cerimônias arcaicas, enterradas pela história, nas quais coincidem exemplarmente erotismo, violência, sacrifício e antropofagia --tudo isso um prato cheio para as análises de Bataille, Pasolini e Girard.

Há quem veja nesse acontecimento sombrio apenas o crime, a degradação e o horror. Outros, porém, poderão enxergar aí a manifestação paroxística de uma nostalgia do sagrado em plena Alemanha pós-industrial --indivíduos exaustos com sua solidão psíquica tentando realizar um esforço sinistro, dessublimado e desmetaforizado, de comunhão total com o outro, talvez com todo o gênero humano em crise, por meio do canibalismo.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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