Pensata

Alcino Leite Neto

16/12/2003

Mil e uma noites em Brasília

Monólogo seguido de um telefonema das Arábias

(Sozinho em sua sala em Brasília, o personagem José Dirceu anda para lá e para cá com as pastas do dossiê Santo André e outros escândalos da República. Ele pára diante de um retrato de Lula, e pensa em voz alta)


Dirceu:

Enquanto os esqueletos vão pulando
das covas assombradas do grotão,
como anacondas sórdidas saltando
em meu mandato sempre temporão. (1)

Enquanto os radicais seguem tramando
rebeliões sem fim neste Sertão, (2)
onde a soja transgênica vai dando
melhores frutos que a revolução.

Enquanto na recôndida Rondônia
_corrijo: nas Roraimas ignotas,
os gafanhotos tão sem-cerimônia
resolveram voar fora das grotas.

Enquanto nesta incrível Babilônia
da América do Norte alguns janotas
nos mandam, com escala na Amazônia,
uma alcatéia louca de lorotas.

Enquanto o dólar foge, vespertino,
e volta de manhã, com seduções.
Enquanto eu penso no Brasil-menino,
que tanta insônia causa e antevisões.

Enquanto eu penso nas educações (3)
deste povo infantil e vivaldino,
e ao PMDB lanço oblações
dele esperando um voto natalino.

Enquanto ao mesmo tempo penso em Davos, (4)
pois nem só da ralé vive um partido
e com Palocci eu conto os mil centavos
do nosso borderô bem-sucedido.

Enquanto ouço velhinhos em conchavos
no Jornal Nacional e, bem varrido,
o Berzoini com seus ignavos
faz o bom Duda achar que foi traído.

Enquanto os ministérios se apavoram
co' as trocas formidáveis que planejo
e os "Benedictus" soam, pedem, oram,
prevendo os funerais que eu antevejo.

Enquanto às minhas costas emboloram
os dramas do Brasil, e o gorgolejo
de todos os tucanos redecoram
jornais de nosso grande vilarejo.

Enquanto eu sofro aqui os mil açoites,
nosso barbudo Rei de Tantas Lábias
deleita-se co'as mil e uma noites
e beberica aos montes nas Arábias!

(Trim-trim-trim: toca o telefone)

Dirceu:

Alô, alô. Falai mais alto! Eu grito!
Alô, alô. Mal posso ouvir os grampos!
É o ACM? A Federal? O Dito-
cujo chamando de seus faustos campos? (5)

Alô, alô. Será Fidel, o mito?
Gabeira a defender os hipocampos?
Será o Chávez e seu plebiscito?
A privatização chegando ao campus?

(Uma voz faraônico-eletrônica soa do aparelho: é o presidente)

Lula:

Errou, meu velho, aqui quem fala é o Lula!
Eu mesmo, sim: global, transinfinito!
Levando a todo povo a minha Bula
_naturalmente com teu pós-escrito!

Tu és meu genoíno irmão caçula. (6)
Sem ti eu já seria um peixe frito.
E sei como padeces feito mula
as sete pragas do Brasil-egito. (7)

As contas de São Paulo te angustiam.
De Rondônia te mandam gafanhotos,
_eu digo: de Roraima_, e te esvaziam
teus bolsos gordos os velhotes rotos.

Os intelectuais te desafiam.
Os radicais inventam maremotos,
A Benedita e os crentes estanciam
lá nos rincões do tango bem remotos.

Desempregados mil já te atarantam.
Reformas vão a passos de camelo.
O juro cai, e as múmias se levantam
das tumbas dos tucanos _pesadelo!

Mas deixa eu te contar, meu cerebelo,
como estas terras árabes me espantam.
Aqui as múmias guardam mais cabelo
Que o calvo Kotscho em vida (8). E todos cantam

e dançam em riquíssimas choupanas.
Não faltam esfihas, homus e caquis,
mas te confesso que lá vão semanas
sem me servirem Romanées-Contis. (9)

Proibições cruéis há nas cabanas
e nos tutelam mouros com fuzis:
jamais nos deixam aproximar, com ganas,
d'água que não bebem os bem-te-vis. (10)

Dirceu (interrompendo):

Melífluo Mestre, mas quanto tormento
estás sofrendo nesse mundo austero!
Os beduínos não têm sentimento!
Proclame aí, correndo, o Gole Zero!

Lula:

Neste deserto, eu, seco e obcecado,
lembrei-me tristemente de Brasília.
Quanto tempo teremos em tal ilha
de paz e de opulência no cerrado?

Dirceu:

Não mais que duas décadas, se a Marta
consegue terminar na Paulicéia
as mil e uma construções que, à farta,
ela faz e desfaz: uma epopéia!


Lula:

Deixa-me então contar exatamente:
para mim, quatro e quatro, e são mais quatro,
se a loura inda chegar a presidente.
Ao todo dezesseis. (11) Ó tempo ingrato!

por que destróis assim, tão lactente,
o sonho nosso de um faraonato
igual ao que visceja no Oriente?

Dirceu:

Tão longa a vida, tão breve o mandato!


Lula:

Já sei o que faremos bem certeiros!
Ouça-me atentamente, ó bom Dirceu:
vamos pedir aos árabes dinheiros
e erguer nossas pirâmides nos CEUs!

Mais de quarenta séculos inteiros
contemplarão o doce poviléu
do topo destes grandes mausoléus
onde descansarão os companheiros!

Dirceu:

Tentou Brizola o mesmo _e sem efeito.
E Lênin, lá no Kremlin, discreto,
mumificado foi, sem um defeito,
mas de nada valeu: virou dejeto.

Lula:

A história às vezes é uma vil jibóia!
Viste o Saddam? Achado num buraco!
Mas devo ir: já vão servir a bóia,
e o quibe aqui é do balacobaco.

Bye-bye, Dirceu, basta de paranóia.
Como diz a Marisa: "A vida é jóia"!

FIM


NOTAS:

(1) A linguagem alusiva do personagem Dirceu é herdeira, em parte, da maneira como se comunicava a esquerda na época da ditadura militar. Em parte, ela é devida ao cuidado do ministro em não ferir a susceptibilidade de aliados políticos tão variados.

(2) "rebeliões sem fim neste Sertão": percebe-se aqui a chama messiânica que ainda inflama o imaginário de Dirceu.

(3) "Enquanto eu penso nas educações": o ministro de fato estaria neste momento matutando uma verdadeira "revolução" no ensino.

(4) "Enquanto ao mesmo tempo penso em Davos": ao pronunciar o nome da célebre cidade suíça, Dirceu optou pela brasileiríssima acentuação paroxítona.

(5) "O Dito-cujo chamando de seus faustos campos": o ministro, num rompante, imagina-se um herói goetheano sendo tentado por um diabo roseano, que lhe ofereceria a perenidade no poder em troca de sua alma de ex-socialista.

(6) "Tu és meu genoíno irmão caçula": o personagem Lula demonstra aqui um verdadeiro amor fraternal por José Genoíno, o que justifica o seu erro na pronúncia.

(7) "as sete pragas do Brasil-egito": as pragas do Egito, de fato, foram dez, conforme o Êxodo (7-8), mas Lula, tomado pela pressa da viagem, resolveu abreviar o número.

(8) "Aqui, as múmias guardam mais cabelo/ Que o calvo Kotscho em vida": este verso, que se refere ao assessor de imprensa Ricardo Kotscho, é copyright do presidente Lula.

(9) "sem me servirem Romanées-Contis": no deserto, o presidente se recorda com saudades do seu vinho francês predileto, da safra 1997, avaliado em mais de R 6.000,00.

(10) "d'água que não bebem os bem-te-vis": inspirado pela milenar poesia árabe, Lula faz aqui uma adaptação bastante lírica do célebre eufemismo popular para cachaça: "água que passarinho não bebe".

(11) Num ato falho ambicioso, Lula faz a conta errada. Na verdade, se somarmos seus quatro anos de mandato, mais quatro com a reeleição e mais quatro ainda que seriam, na sua idéia, as do mandato presidencial de Marta Suplicy, a conta total resultaria em 12, e não em 16 anos de governo do Partido dos Trabalhadores.



Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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