Pensata

Alcino Leite Neto

22/12/2003

I love yakisoba e outras imagens paulistas

"I love yakisoba" é o nome de um trailer que vende o famoso prato oriental na avenida Liberdade, em São Paulo. O yakisoba é preparado na hora, numa frigideira gigante, onde o vendedor-cozinheiro faz a mistura: macarrão grosso, legumes e carne. Tudo é servido numa vasilha descartável de plástico, e o cliente paga módicos R$ 3,50 pela refeição.

Quem passa por ali acha natural a presença do trailer na porta de entrada do bairro da Liberdade, onde vive uma maioria de japoneses, chineses e coreanos. Mas, se avançamos até a Paulista, que não fica longe dali, veremos que o yakisoba também já se está se difundindo por esta avenida que é o principal símbolo de São Paulo.

Ao longo da Paulista, sobretudo à noite, os chineses deram de instalar nas calçadas uns fogões ambulantes, onde preparam o prato na hora, e velozmente, às vezes cobrando apenas R$ 2,50.

Implementado por novos imigrantes orientais que mal falam o português, o yakisoba expresso é um negócio em franca expansão em São Paulo. E, nas ruas, deve se tornar em breve o grande rival do hot-dog _até agora o alimento rápido preferido dos boys, motoboys e estudantes pobres.

Tanto mais que o yakisoba parece apresentar várias vantagens sobre o cachorro quente: reúne o gosto do macarrão, tão estimado na italianizada São Paulo, com as supostas vantagens dos legumes, mais o paladar da carne _tudo isso misturado, como num bom mexido brasileiro, e servido numa vasilha bem generosa.

Na Paulista, os camelôs chineses de yakisoba, com suas panelas que à noite espalham fumaça pela avenida semi-escura, dão uma atmosfera retrô-futurista à cidade, como se estivéssemos no ensaio de um "Blade Runner" caboclo.

A CIDADE ESCURA
Nos anos 80, um dos melhores críticos de cinema de todos os tempos, o francês Serge Daney, esteve em São Paulo. Era bastante famoso à época, e foi por isso entrevistado pelos jornais, que também quiseram saber o que ele pensava da cidade, do ponto de vista urbanístico.

Muito pós-modernamente, Daney achou a cidade escura, e sugeriu que anúncios luminosos fossem espalhados por São Paulo, nas fachadas das lojas e no alto do edifícios, a fim de melhor iluminá-la e também torná-la mais contemporânea, a exemplo do que se fizera em Tóquio.

Poucos anúncios desse tipo foram acrescentados à cidade desde então. Urbanistas talvez reclamem deste loteamento publicitário dos espaços luminosos da cidade, mas não há no fundo grande diferença entre eles e os outdoors de madeira e papel espalhados caoticamente por todo canto, exceto serem estes menos onerosos.

Os neóns e luminosos continuam a ser uma bela solução para a noite austera das ruas de São Paulo _ainda mais que agora podemos dispor também daqueles telões gigantes que exibem imagens em movimento. Um deles, aliás, mostrava há alguns meses na rua da Consolação trabalhos de videoarte, o que demonstra o potencial não apenas publicitário, mas também cultural dos telões.

Pode-se imaginar o efeito que causaria, em baixo do Minhocão, com suas colunas sinistras cheias de desenhos kitschs, a instalação de um numeroso conjunto de telões ao longo de todo o viaduto, nos quais fossem exibidos, além de anúncios, uma nova categoria de intervenção urbana: o graffitti videográfico.

Um amigo chega a sugerir a exibição contínua de poemas pós-concretistas nas partes ensombradas dos grandes edifícios do centro. Outro amigo propõe que a artista Regina Silveira, que tem criado obras tão interessantes com luzes e projeções, fosse convidada pela Prefeitura para repensar a iluminação de áreas cruciais da cidade.

É curioso que em São Paulo, cidade conhecida por seu apreço pela vida noturna, se fale tanto em revitalização arquitetônica da cidade, mas seja tão raro alguém mencionar projetos voltados para a reforma urbanística da noite. Do ponto de vista do planejamento luminoso noturno, a capital paulista ainda é uma cidade muito antiquada.

CAIPIRAS NO JARDIM PAULISTA
A "Veja São Paulo" ressalta em matéria de capa as lojas de grifes luxuosas e internacionais no Jardim Paulista. Marcas como Armani, Bulgari, Montblanc, Cartier, Tiffany estão todas instaladas em um "quarteirão de ouro" do local de compras da classe alta da cidade.

Neste final de ano, no entanto, o que chama a atenção de quem visita a rua Oscar Freire e arredores é a patética decoração que foi instalada no lugar. Uma companhia de cartão de crédito espalhou pelas ruas dezenas de quiosques de madeira, além de tótens pelas calçadas que imitam postes de luz à antiga _tudo decorado com motivos natalinos e, obviamente, com publicidade.

Apesar das lojas internacionais, os enfeites acentuam não a dimensão cosmopolita das ruas, mas sua substância caipira. A decoração impregnou tudo tudo ali, nos Jardins, de uma curiosa atmosfera provinciana com as barracas e seus bancos tradicionalistas de madeira, onde os pedestres podem se assentar como se estivessem em caramanchões de pequenas praças interioranas.

BÍBLIA, O BEST-SELLER
Seria preciso uma enquete, mas tudo leva a crer que a Bíblia é atualmente uma das leituras prediletas dos paulistanos.

Na França, os cronistas na imprensa falavam da frequência com que se via pessoas lendo o Alcorão no metrô. No metrô de São Paulo, é a Bíblia o livro que mais se vê na mão dos viajantes, que rarissimamente carregam jornais. Numa loja na rua Augusta, o caixa intercala o atendimento dos clientes com a leitura da obra sagrada. No ponto de ônibus, a mocinha saca da bolsa uma edição portátil da Bíblia, mergulhando atentamente na leitura.

O fenômeno deve ter a ver com a difusão desta variedade incrível de credos neopentecostais na capital, que mais que dobraram seu número de fiéis nos últimos dez anos. Será que devemos aguardar para o futuro uma onda de fundamentalismo cristão na cidade de São Paulo, onde o puritanismo capitalista aliás grassou melhor que em outras paragens do Brasil?

ROUBANDO OS LADRÕES
Uma amiga me conta a estratégia que desenvolveu para ludibriar os ladrões, pequenos e grandes, que vivem atormentando nos sinais de trânsito. Criou uma falsa bolsa para carregar no carro.

Isto é: a bolsa com os documentos verdadeiros, o dinheiro graúdo e o celular, fica escondida embaixo do banco. Em cima da poltrona do carro, ela deixa uma bolsa barata, aliás uma imitação Louis Vuitton, de produção oriental e comprada no camelô, com carteiras de mentira, fora o papel jornal que serve de enchimento.

Na pressa e na nervosia do assalto, o ladrão não vai se dar ao trabalho de conferir o conteúdo em detalhes. Sai correndo com a bolsa pelas ruas, e só mais tarde vai descobrir como foi tapeado por sua vítima.

GÓTICOS NO CEMITÉRIO
O cemitério do Araçá, na região central de São Paulo, é uma prova incontestável do multiculturalismo da cidade ao longo do século 20. Mais ainda que o cemitério da Consolação, onde estão sobretudo sepultados os mortos das famílias tradicionais, "quatrocentonas", da capital.

O Araçá é praticamente dividido em duas partes. Na parte alta do cemitério, estão os túmulos das famílias mais abastadas. Na parte baixa, predomina a classe média _o que se percebe devido à decoração menos requintada das tumbas.

Tanto no alto quanto embaixo, porém, a mistura de origens predomina: japoneses, libaneses, judeus, alemães, italianos etc. _uma mixórdia que leva o cosmopolitismo da cidade também para o além-túmulo.

Andando pelo Araçá para fazer uma sessão de fotos, encontro uma pequena turma de góticos, esse jovens que se vestem de negro dos pés à cabeça, mesmo debaixo de um calor de 30 graus, cultivam o romantismo à lorde Byron, a morbidez à la Edgar Poe, o rock à la The Cure e adoram se encontrar em cemitérios.

Conversa vai, conversa vem, os góticos me dizem que também são comunistas e trotskistas.

I LOVE SÃO PAULO
Quando mudei para São Paulo sempre me espantava que os próprios paulistanos proclamassem em alto e bom som que sua cidade era muito feia. Sentia que, no fundo, tinham imenso orgulho de viver aqui, por causa da pujança econômica e cultural, mas praticavam esta espécie de auto-depreciação como um hábito, talvez para colher depois algumas pequenas vantagens radiosas.

Mais estranho para mim era vê-los assinalar como horrendas algumas partes da cidade que eu justamente achava as mais extraordinárias, como as Marginais, com seu trânsito caótico e as entradas numerosas e imprevisíveis que elas prometiam para dentro da cidade; a avenida Santo Amaro coberta de pichações como se fosse uma gigantesca instalação urbana; o Minhocão, que leva os carros a correrem quase à beira das janelas dos prédios; os camelôs empilhados no Viaduto do Chá, como se estivéssemos numa grande feira oriental; os hotéis decadentes do centro da cidade, que pareciam cenários prontos para filmes B americanos; a avenida Nove de Julho, depois do túnel sobre o Masp, dirigindo-se apertada para o centro da cidade e atravessada por um emaranhado confuso de viadutos e ruas, até atingir o vale do Anhangabaú _uma aparição final grandiosa e cinematográfica, aos meus olhos.

Talvez se deva a esse desgosto dos paulistanos com a aparência de São Paulo a incapacidade dos diretores de cinema locais de exibirem com interesse a tessitura urbana da cidade. É raríssimo vermos um filme que explore bem nas imagens, de maneira atual, sem nostalgias nem folclorismos, as tipicidades urbanísticas e sociais da capital.


Tenho a impressão, talvez exagerada, que os paulistanos gostariam e compreenderiam muito mais a sua cidade, e cuidariam dela com mais afinco, se os diretores tivessem tido sensibilidade para transformá-la num mundo de correspondências cinematográficas, em vez de só filmarem em apartamentos de cobertura com vista para o skyline imenso e acinzentado. O cinema é também um modo de se aproximar das paisagens, das cidades, das coisas e das pessoas e aprender a estimá-las. Talvez ainda haja tempo para isso.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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