Pensata

Alcino Leite Neto

28/12/2003

Adeus, velha política

Adeus, velha política

A cidade de Berlim na época da Guerra Fria, com seu Muro que separava o mundo capitalista da utopia comunista, foi tema e cenário de vários filmes, com frequência de suspense ou de espionagem.

Raríssimas comédias abordaram essa aberração geopolítica --e uma delas foi a deliciosa "Cupido Não Tem Bandeira" (One, Two, Three), dirigida por Billy Wilder, realizador de origem alemã que vivia nos EUA.

O filme de Wilder é certamente anticomunista, ridicularizando bastante os russos e alemães orientais, mas o diretor também não economiza na gozação aos americanos --a sua perversa especialidade.

Wilder já tinha rodado metade de seu filme, quando, em 1961, começou a ser erguido o Muro. Ele teve que refazer o roteiro, além de várias cenas, mas em compensação a fita acabou ganhando uma imprevista atualidade. "Cupido Não Tem Bandeira" estreou nos cinemas naquele mesmo ano.

No filme, a espevitada filha de um empresário da Coca-Cola se apaixona perdidamente por um soldado de Berlim Oriental e está disposta a tudo para ficar ao lado dele, até mesmo a se mudar para o Leste socialista. O pai, desesperado e com a carreira em risco, é quem terá que resolver a situação, dando um jeito para trazer o soldado secretamente para o Oeste capitalista.

Agora, a divisão da Alemanha e de Berlim é tema de outra comédia interessantíssima, "Adeus, Lênin", que fez tremendo sucesso em seu país e acaba de estrear nos cinemas de São Paulo.

Do ponto de vista cinematográfico, é um filme inferior ao do mestre Billy Wilder. Como sátira, porém, "Adeus, Lênin" é bem mais provocador.

No filme do diretor alemão Wolfgang Becker (que prefere qualificar seu trabalho de tragicomédia), uma fervorosa comunista, mãe de família, sofre um infarto ao ver o filho participar de uma manifestação anti-socialista.

Enquanto está em coma, acontece a revolução: são abertas as fronteiras de Berlim Oriental, começa a derrubada do Muro (1989), é proclamada a reunificação das Alemanhas (1990) e depois de quase 30 anos, os ex-comunistas desembestam-se numa corrida louca rumo aos bens de consumo e entretenimento da Berlim capitalista.

A mulher se restabelece e, não podendo ter contrariedades, sua família trata de reconstituir no quarto onde ela fica em convalescença todo o habitat em que vivia antes de o seu velho mundo ir por terra.

As situações cômicas vão surgindo das dificuldades da família em criar num quarto esta estufa ideológica, com as coisas, os personagens e os símbolos do país comunista, que já foram rapidamente jogados na lata de lixo da história. Ao mesmo
tempo, o diretor aproveita a invasão de Berlim Ocidental pelos habitantes de Berlim Oriental, e vice-versa, para exibir o ridículo de ambos os mundos.

Surpreendente no filme é o diretor passar ao largo de todo o velho debate ideológico, reduzindo, com as armas da comédia, a disputa entre comunismo e capitalismo a um confronto de diferentes ícones culturais, representações midiáticas e hábitos cotidianos.

Mas não vou estragar o prazer dos leitores que ainda não viram este filme recém-lançado. Voltarei a ele assim que todos estivermos recobrados das estafantes festas de final de ano. Feliz 2004.
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

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