Pensata

Alcino Leite Neto

04/01/2004

Thomas Mann no século 21, com um gole de Coca-Cola

As folgas de final de ano deram a chance de ler o "Doutor Fausto", de Thomas Mann, obra imensa que poucas outras ombreiam, mas cuja leitura, por algum motivo interior, este colunista adiava há décadas. Talvez tenha sido melhor assim. A literatura de Mann, mais ainda o "Doutor Fausto", pede um leitor amadurecido.

Várias e boas análises já foram escritas sobre esse livro monumental, que Mann iniciou no exílio americano, numa manhã de 23 de maio de 1943, quando tinha 68 anos, e terminou em 29 de janeiro de 1947. Seria fútil acrescentar alguns comentários apressados a respeito.

Fico aqui com um outro livro, "A Gênese do Doutor Fausto", em que Mann recapitula passo a passo a construção de sua obra-prima. No Brasil, a "Gênese" foi publicada em 2001, pela editora Mandarim, numa boa tradução de Ricardo F. Henrique. É um adendo essencial à leitura do "Doutor Fausto", mas também um relato atraente e inteligente, em tom bastante confessional, sobre o exílio, a vida americana, os traumas da Segunda Guerra, a amizade e sobretudo o processo de criação literária.

De qualquer criação literária temos em geral uma percepção bastante idealizada. Imaginamos o escritor com seu gênio debruçado sobre a mesa de trabalho, despejando, solitariamente, sobre o papel todo um mundo imaginário.

Pois, a "Gênese" de fato nos deixa uma outra impressão do escritor. Ao escrever "Doutor Fausto", Mann parte certamente de um conjunto de preocupações e fantasmas pessoais, mas está inteiramente dedicado a dar ao seu romance uma objetividade temática e formal que torna a realização do "Doutor Fausto" quase um trabalho "científico". Tanto mais "científico" e objetivo quanto mais "esotérico" é o seu tema --o pacto de um artista com o demônio.

Essa objetividade já se manifesta no modo como Mann delineia o seu personagem, que deveria ser um símile dos grandes gênios artísticos e filosóficos alemães --o que o leva a ler ou reler uma série de biografias, sobretudo de Nietzsche, buscando aqui e ali elementos consistentes aos contornos psicológicos e às atitudes de Adrien Leverkuhn, o protagonista do livro.

Como esse personagem deveria também ser uma espécie de emblema do espírito alemão, de sua glória e de sua catástrofe --expressa no apocalipse nazista então em andamento--, Mann também percorre incansavelmente as fontes dos mitos germânicos e não perde de vista a história, passada e presente, para ele um valor central, e não um pano de fundo.

Além disso, Mann coloca a si mesmo a dificuldade de criar um personagem que é músico. Ele poderia ter concebido Adrien como um gênio literário --mas isso não apenas seria uma facilidade, como ele também perderia a proeminência que a música exerceu sobre o temperamento e a história cultural alemã.

Para fazer de Adrien um músico, e um músico contemporâneo que promove uma ruptura vanguardista na tradição (inspirado no que fez Schoenberg), Mann teve que repassar toda a sua própria cultura musical, que já era impressionante, mas também estudar, repensar, escrever e reescrever à exaustão capítulos inteiros que tratavam das experiências criadoras de seu protagonista.

Para tanto, ele contou com a ajuda do filósofo e crítico musical Theodor Adorno, que também estava exilado nos Estados Unidos. Impressiona que, antes mesmo de o livro estar terminado, Mann tenha entregue sem qualquer inibição a Adorno os manuscritos do livro, para que o crítico "conferisse" os capítulos dedicados à música, como se fosse um ensaio ou uma tese.

As observações frequentes de Adorno levam Mann a modificar partes inteiras da obra, o crítico atuando quase como um co-autor ou um "orientador" do "Doutor Fausto".

Escreve Mann: "Naquele dia Adorno ainda não estava preparado para me dar instruções e estímulos musicais para a opus de Leverkuhn, mas garantiu-me estar refletindo com cuidado sobre o assunto, prometendo logo me revelar as idéias que tinha em ebulição. "Este livro de reminiscências (a "Gênese") seria bastante incompleto se eu não mencionasse o modo como ele manteve a palavra. Nas semanas seguintes, visitei-o repetidas vezes com lápis e caderno na mão. Junto a um delicioso licor de frutas caseiro, ia anotando rapidamente, em palavras-chaves, suas sugestões para o aprimoramento dos trechos musicais do começo do livro, bem como as características específicas que ele imaginava para o oratório" (pág. 123).

Não só Adorno teve acesso ao "Doutor Fausto" antes de o livro estar terminado, como Mann leu capítulos inteiros em voz alta para platéias selecionadas e cultivadas, de amigos e conhecidos, à medida que eles iam sendo escritos --uma maneira, talvez, de o escritor testar concretamente o impacto da narrativa (como Kafka também fazia, conta-se).

Em todo o processo de criação do "Doutor Fausto" reina portanto uma atitude de extrema objetividade, aprendizado, entendimento e legibilidade (e não estou aqui falando em facilitação da leitura), atitude esta que contraria demasiadamente a idéia do escritor como um iluminado que se trancafia em seu imaginário para depois dar à luz à expressão genial. Uma lição para futuros escritores: ambição, pesquisa, trabalho e objetividade.

Mas, voltando a Mann, é um clichê que precisa ser desmentido aquele que diz que este alemão é um escritor do século 19 em pleno século 20, pelo tanto que respeitou da forma romanesca tradicional, sem se interessar em aplicar nos seus livros as experiências vanguardistas.

Se os críticos literários me permitissem, eu romperia com essa visão nostálgica, reativa e escolástica da obra de Mann e diria uma blasfêmia: que Mann é já em sua época um escritor pós-vanguardista (eu quase ia escrevendo pós-moderno). Ou de uma outra vanguarda, muito particular, que produz rupturas sutis e difíceis no romance, transformando-o bastante por dentro, ao fazer a forma convencional dialogar ironicamente com o ensaísmo filosófico, o tratado histórico e a biografia.

Gostaria por fim de citar um trecho da "Gênese do Doutor Fausto", chamando a atenção do leitor para o valor da palavra "paródia" na seguinte reflexão um tanto cínica de Mann, depois que ele leu "James Joyce", de Harry Levin:

"Já que continuo sem acesso direto à obra linguística do irlandês (Joyce), para conhecer esse fenômeno sou obrigado a recorrer à mediação crítica, e textos como o de Levin ou o grande comentário de Campbell sobre o "Finnegans Wake" me evidenciaram não só relações insuspeitas como até afinidades, a despeito de todas as diferenças entre nossas naturezas literárias. Meu preconceito era que, comparada ao vanguardismo excêntrico de Joyce, minha obra parecesse de um tradicionalismo insosso.

Nesse ponto, é verdade que o vínculo à tradição, ainda que matizado de paródia, permite um acesso imediato, facilitando o alcance de uma certa popularidade. Mas trata-se mais de postura que de essência. "Assim como seu tema revela a decomposição da classe média, a técnica de Joyce vai além dos limites da ficção realista. Em sentido estrito, nem "O Retrato do Artista Quando Jovem", nem o "Finnegan's Wake" são romances, e "Ulisses" é um romance para pôr fim a todos os romances" (citação de Levin). Isso também se aplica à 'Montanha Mágica', ao "José" e ao "Doutor Fausto", e a questão de T.S. Eliot "se, desde Flaubert e James, o romance não sobrevivera à sua função, e se o "Ulisses" não deveria ser considerado um épico" coincidia plenamente com minha própria questão: não parece que, no âmbito do romance, hoje só é levado em consideração aquilo que não é mais romance?" (págs. 75 e 76).

Por essas e outras dúvidas, sem falar na supra-citada objetividade anti-romântica de Mann, o autor de "Doutor Fausto" é certamente um dos escritores que mais têm a dizer à prosa do século 21.

UMA COCA-COLA PARA O DOUTOR FAUSTO

Em uma passagem deliciosa de "A Gênese do Doutor Fausto", Mann relata uma operação à qual foi submetido quando ainda não terminara seu livro e os vários dias em que passou no hospital. No trecho, repleto de minúcias médicas, de nomes de remédios e de descrições de estados patológicos, tudo aquilo tão ao gosto do escritor, de repente desponta uma popíssima Coca-Cola. Vale a pena citar a passagem:

"Num estado de saúde debilitado, é normal que os sentidos se tornem suscetíveis e críticos, e nos sentimos por demais refinados para suportar coisas que são comuns na vida cotidiana. Para meu próprio espanto, isso se revelou em minha rejeição a bebidas alcoólicas. O mais nobre vinho do Sul trazido por Medi Borgese era intragável; na melhor das hipóteses, sem sabor. Até mesmo da leve cerveja americana eu fazia pouco. Em contrapartida, em todas as refeições sorvia Coca-Cola em grandes quantidades: a bebida predileta das crianças e que nunca me apeteceu --nem antes, nem depois-- agora, de repente, tornara-se a menina dos meus olhos" (pág. 143).
Alcino Leite Neto, 46, é editor de Domingo da Folha e editor da revista eletrônica Trópico. Foi correspondente em Paris e editor do caderno Mais! Escreve para a Folha Online quinzenalmente, às segundas.

E-mail: aleite@folhasp.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca