Pensata

Antonio Carlos de Faria

02/10/2003

O insubstituível

Vende-se uma identidade. Oportunidade única. Homem financeiramente estável, casado (mulher em excelente estado), com filho universitário (prestes a se formar) vende sua identidade pelo melhor preço. Aceito troca por bem de menor valor, com diferença a ser paga em dinheiro.

Quando Josué mostrou o anúncio para os amigos, quase provocou um engasgamento coletivo durante o jantar semanal da confraria. A turma achou que ele estava aprontando alguma. Que história era essa, afinal ele não sabia que um amigo é insubstituível?

Diante dos olhares incrédulos, sustentou que o anúncio era real, no duro, e estava publicado nos classificados mais bem classificados do país. Simplesmente se cansara da própria identidade e resolveu passá-la adiante.

Não via razão para o espanto, afinal esse tipo de coisa acontecia há muito tempo entre políticos, por exemplo. Eles costumam trocar de identidade quando chegam ao poder. Dizem que nunca foram disso ou daquilo, que nunca escreveram essa ou aquela tese, mudam completamente e ninguém se coça por isso, argumentou.

Josué se propunha a ser um pioneiro, lançando a prática para o público em geral, ampliando e formalizando o mercado. Nada de negócios por debaixo do pano, daí a idéia do anúncio.

Os amigos, para estimular o que imaginavam ser uma brincadeira, perguntaram o que a mulher e o filho de Josué pensavam daquilo. A Isaurinha achou a idéia excitante, disse ele. Era a chance de encontrar um marido rico. Já o filho não achou grande coisa, pois ter um pai em nova versão ou antiga não iria mudar seus planos de deixar a família, tão logo estivesse em condições para isso.

O jantar continuou e a venda de identidade foi o assunto único. Todos estavam achando graça na iniciativa, mas ninguém a levou a sério. Até que semanas depois um estranho se sentou à mesa, ocupando o lugar do Josué.

O sujeito foi logo apresentando as credenciais. "Comprei a identidade do antigo amigo de vocês. Agora serei eu, ou melhor, eu com a identidade dele, que virei aqui toda semana".

Houve comoção geral. Alguns caíram na gargalhada, enquanto outros quiseram pegar o alienígena pelo pescoço. Os partidários do deixa disso conseguiram pacificar os ânimos e exigiram mais explicações.

"Não há o que explicar. Sou o Josué de direito e de fato. E para comemorar prometo pagar a conta deste jantar e dos próximos, até o final do ano", disse o mais novo integrante da confraria.

As coisas colocadas com tal objetividade seduziram a maior parte dos comensais. Os renitentes continuaram com as perguntas ao novato, sem deixar de mordiscar as iguarias.

No decorrer do rega-bofe, ficaram sabendo que o novo Josué era um empresário de atuação heterodoxa, desses que precisam fazer gastos para lavar dinheiro. Ele já havia utilizado laranjas indiretos em vários negócios, mas sua situação delicada exigia uma mudança radical, daí a compra da identidade.

E a Isaurinha, como havia ficado? "Está feliz da vida. No próximo mês, vai para uma clínica de rejuvenescimento na Suíça, quer voltar 20 anos mais moça, repaginar a si mesma", disse o novo Josué, acrescentando que o filho do casal também estava mudado, a ponto de não querer mais ir embora de casa.

Foi durante a sobremesa e antes do cafezinho que alguém, sem muito entusiasmo, perguntou por onde andaria o velho Josué.

"Não tenho certeza", disse o novo amigo de todos. "Quando fechamos o negócio, ele me falou que ia se dedicar a escrever crônicas. Imagino que esteja nesse ramo agora".
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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