Pensata

Antonio Carlos de Faria

10/10/2003

O café das vestais

"Você tem que adorar a vida, sabe? Porque a morte é muito chata!", disse Frank Sinatra em um dos muitos livros que lhe traçaram uma biografia. A lembrança ocorre quando o som ambiente do shopping começa a difundir "All the way". O lema sinatriano é um lenitivo diante da tarefa maçante que é ir fazer compras.

Para muitas pessoas, comprar, olhar vitrines, passear por corredores feéricos é um prazer quase completo. Para outras, o ritual chega próximo de um tormento, cujos efeitos perduram até mesmo depois que se consegue fugir do antro de suplícios.

Reconheço que antro de suplícios é uma expressão exagerada para se descrever um shopping. Mas é adequada ao outro chavão que classifica esses estabelecimentos como templos do consumo. Os templos sempre precisaram de vítimas para os sacrifícios.

Shoppings e templos são locais criados pelo homem para que ele possa viver, mesmo que por pouco tempo, a esperança de que há algo que o complete. Os imensos espaços, o pé direito monumental, os efeitos de iluminação compõem os seus acervos assemelhados de truques mágicos.

Mas "All the way" continua nos altos falantes e Frank Sinatra afinal estava certo. Vamos aproveitar mesmo os pequenos gozos, pois um dia eles serão nenhum. Então, às compras no shopping, transformando cada pequena aquisição supérflua em alumbramento.

Particularmente nesse shopping há um recanto que se deve visitar. É um café anexo a uma grande livraria, no qual o melhor lugar são as cadeiras junto ao balcão. Dali é possível ver em plenitude as garçonetes na lida constante.

As moças logo despertam a atenção pois nenhuma delas é o que se pode chamar de mulher bonita. São cinco ou seis e cada uma, a seu modo, tem uma particularidade que também impede que se possa achá-las simplesmente feias.

Um lirismo piegas diria que toda mulher é bela e resolveria o assunto. Acredito que a questão é mais complexa. Essas garçonetes estão no shopping obedecendo a um desígnio superior, que necessariamente não precisa ser de natureza sobrenatural.

Explico. No resto do shopping quase todas as funcionárias de lojas, bares e quiosques são belas e algumas são mais do que isso, são modelos de beleza. É claro que há algumas feias, mas se dissolvem no mar de formosura que os padrões dos departamentos pessoais impõem como critério para contratação.

A beleza física em um shopping faz parte do jogo ilusório da completude. Não nos esqueçamos que estamos em um templo cuja função última é fazer com que possamos suportar de forma capenga a própria natureza faltosa a que estamos condenados. As funcionárias são as vestais e sibilas do espaço consagrado.

No café das mulheres feias, ou de beleza indefinida se preferirem, a ilusão se desfaz. Ali reside a crueza das nossas limitações e a certeza de que nada pode saciar a sede pelo que não há. Quem as colocou todas juntas deu ao shopping uma dimensão transcendente.

Quem colocou "All the way" nos alto-falantes pode estar por trás de tudo isso. Não há como ter certeza. Só o que podemos saber é que Frank Sinatra tinha razão.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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