Pensata

Antonio Carlos de Faria

06/11/2003

O gato Tico

Ulisses, ao regressar para seu palácio, após anos de sofrimentos e aventuras, só foi reconhecido por Argos, seu velho cão, que doente e maltratado esperou pacientemente pelo dono. Penso nisso quando, ao retornar das batalhas, sou recebido pelo Tico.

O herói da mitologia grega chegou disfarçado de mendigo, pois queria surpreender os traidores que dilapidavam seu patrimônio e cobiçavam sua mulher. O fiel Argos não se deixou enganar e balançou o rabo em sinal de felicidade, morrendo logo depois. Talvez esse seja o relato mais antigo sobre a relação de lealdade entre um cachorro e seu dono.

Antes mesmo de os gregos terem elaborado seus mitos, no outro lado do Mediterrâneo, os egípcios já haviam domesticado os gatos e os cultuavam como deuses. Com leis severas, proibiam que os felinos fossem contrabandeados para fora do país. Não adiantou. Os gatos se espalharam pelo mundo e, por vias imemoriais, o Tico acaba sendo um legítimo descendente dessa linhagem divina.

Trata-se de um gato preto e branco, com dois anos, saudável e esperto. Não tem raça definida, ou melhor, é autenticamente um exemplar de brazilian street cat. Nos conhecemos desde que ele tinha menos de dois meses, o que contribuiu positivamente para construir uma relação de confiança mútua.

Os especialistas dizem que, até os sessenta dias de vida, os gatos definem como vão se relacionar com os humanos. Caso sejam tratados com respeito e carinho, serão condescendentes e quase com certeza retribuirão o afeto. Se nesse prazo não forem cativados, tenderão a exercer sua poderosa inteligência para prudentemente evitar maiores proximidades com os humanos.

O Tico gosta particularmente de se deitar ao meu lado nas horas em que me instalo no sofá para ler, ver TV ou escutar música. Às vezes percebo que me olha fixamente e, diria até mesmo, com curiosidade. Parece que ele questiona a inutilidade dos meus atos.

Acho que para os gatos a vida humana só faz sentido na medida em que é despendida em cuidados com eles mesmos. Os felinos não seduzem pela humildade subserviente, no que diferem totalmente dos cães leais e de outros seres ardilosos. O fascínio exercido pelos gatos advém de sua capacidade de nos colocar no devido lugar.

Os egípcios já sabiam disso, como sabiam de muitas outras coisas que o mundo esqueceu. Coisas que o Tico parece saber, mas que eu, extremamente limitado, não consigo compreender.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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