Pensata

Antonio Carlos de Faria

27/11/2003

Crônica contra a melancolia

O último livro de Ruy Castro, "Carnaval no Fogo - crônica de uma cidade excitante demais", é uma obra provocadora. Vai contra a onda melancólica que assola o país ao mesmo em que põe a nocaute dois filhos dessa doença: o cinismo intelectualizado e o voluntarismo bocó.

O livro foi construído como uma extensa crônica sobre a história do Rio de Janeiro. A própria forma escolhida pelo autor é uma provocação. Tida como gênero menor da literatura e uma diversão do jornalismo carioca, a crônica não tem a pompa ou o rigor vetusto, geralmente associados aos relatos históricos.

Mas nada melhor do que a crônica para contar a história da cidade onde ela mesma floresceu e ainda sobrevive. E não há um traço de melancolia nas 250 páginas da maior crônica já escrita sobre o Rio. Não há choro pela perda do paraíso. Nem saudosismo por um tempo que não se pode mais alcançar.

Essa atitude é assumida naturalmente por Ruy Castro, sem fazer dela uma bandeira. Seu livro é isento do ranço dos panfletos políticos, pois não sugere um ideário a ser propagado. Os melancólicos se sentirão provocados, pois vão denunciar a falta de palavras que reiterem a ilusão em que estão submersos, a de que houve uma época de ouro a ser resgatada.

Talvez haja quem defenda que o Rio pré-liberação sexual, anterior aos anos 70, tenha sido melhor do que a cidade contemporânea. Ruy Castro coloca esse como o grande momento de diferenciação comportamental que mudou a cultura do mundo e alterou para sempre antigas tradições cariocas, entre elas sua maior instituição: o Carnaval. Porém convenhamos que, além de ser inútil, é um grande desperdício ficar se lamentando pela volta de uma sexualidade mais ingênua e limitada. Se é assim que vivemos, vamos aproveitar.

E antes que alguém suba nos tamancos, reclamando que não se pode escrever sobre o Rio sem falar da violência, é bom deixar claro que o autor não foge do assunto. O livro lembra que a insegurança permeia a história carioca.

A atual configuração da violência, associada ao tráfico, tem genealogia anterior aos próprios europeus, que trouxeram novas modalidades de horror a um território no qual os tupinambás já praticavam a chacina de gangues rivais. O bom selvagem é um mito tão ingênuo quanto a mania de tratar menores de 18 anos como se fossem anjos de candura.

O Rio é a única unidade colonial que foi capital do império que a englobava. Esse destino cosmopolita não produziu uma cidade onde heterogeneidades culturais conquistem territórios. Ao contrário de metrópoles que têm seus bairros italianos ou orientais, qualquer imigrante por aqui vira carioca antes mesmo de sua descendência. É claro que pode conservar o sotaque, mas isso será um dístico de charme e não de auto-segregação.

O livro provocador de Ruy Castro dá a devida dimensão a essa riqueza, mostrando que o Rio pulsa constantemente em seu processo de criar o novo, surpreendendo sempre. Mesmo àqueles que justificam a própria opacidade como se fosse culpa da época sombria em que vivem.

"Carnaval no Fogo - crônica de uma cidade excitante demais"
editora Companhia das Letras, 255 páginas
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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