Pensata

Antonio Carlos de Faria

05/12/2003

O bonde da história

Seis horas da tarde e o táxi desliza na imensidão desolada que leva do centro de Brasília ao aeroporto. Os ônibus passam lotados e numa fração de segundos é possível ver uma senhora gorda em um dos pontos, esperando o seu coletivo para embarcar.

A cena se desfaz na velocidade do tráfego, mas a imagem permanece a ponto de revolver a memória e revelar vestígios arqueológicos. O que vem à tona é a lembrança de uma crônica escrita por Raquel de Queiroz em 1953 e perpetuada em um livro que encontrei anos atrás num sebo carioca.

A escritora registra com mestria e bom humor a superlotação dos bondes do Rio de Janeiro. Sua crônica começa justamente com as manobras corporais que uma senhora gorda realiza para conseguir um lugar no carro que vai da Praça 15 ao Engenho de Dentro.

Naquele ano, Brasília ainda não existia e o Rio era então o Distrito Federal, a hoje mítica Guanabara. A crônica termina com o discurso exaltado de um passageiro anônimo, que defende a construção da nova capital do país.

Ao ler a crônica, fiquei surpreso, pois até ali só conhecia os argumentos políticos e econômicos que fundamentaram a criação de Brasília. Nunca ouvira falar que havia também um discurso popular favorável à medida.

O personagem tenta convencer os outros passageiros apertados na lata de sardinha de que a nova capital iria beneficiar os cariocas. Em seu raciocínio, o Rio ficaria mais vazio, liberando espaço nos bondes e diminuindo os congestionamentos nas ruas.

Cinqüenta anos se passaram e as previsões do personagem não se cumpriram. A construção de Brasília significou não uma solução para os problemas do Rio, mas seu esvaziamento econômico.

Por outro lado, a nova capital cumpriu cruelmente o papel de se tornar um pólo para a interiorização do país. Contrariando as utopias, não criou um novo paradigma, mas levou consigo os mesmos padrões de injustiça social que infestam os centros urbanos brasileiros.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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