Pensata

Antonio Carlos de Faria

19/12/2003

Conto-do-vigário

De tempos em tempos, vejo uma moça no metrô da Carioca pedindo trocados para completar a passagem. "Preciso de ajuda para voltar", diz ela numa representação que infunde dó e ao mesmo tempo simpatia.

Tantas foram as vezes em que a vi, que cheguei a imaginar que sua viagem deveria ser para muito longe e a passagem cara, pois ela nunca completa o valor.

Também me intrigava o fato de a moça repetir a mesma performance. Sempre quer ajuda para voltar, nunca para ir.

Ela é exímia em uma antiga arte, que acredito não ter sido catalogada, sendo difícil defini-la por uma só palavra. Trata-se de uma subdivisão dos que vivem de expediente, uma variação mais delicada e talentosa da malandragem.

É uma arte ainda presente nas ruas, mas tenho a impressão de que esteja em risco de se extinguir, sucumbindo à prevalência cada vez maior de formas violentas de subtrair o dinheiro alheio.

De certo modo, o fato de essa arte desaparecer deixa menos poético o cotidiano, obscurece a graça do dia-a-dia, pois também significa que as pessoas estão menos propensas a serem surpreendidas, não admitindo o engano.

Há outras versões dessa artimanha, mas da mesma forma parecem estar entrando na lista de espécies ameaçadas. Isso acontece com golpes como o do bilhete de loteria "premiado", ou do conto-do-vigário, ou do cheque caído no chão.

Truques envoltos em uma aura humorística, que só não fazem rir as próprias vítimas. Essas terminam quase sempre lesadas por serem ingênuas ou gananciosas, ou as duas coisas ao mesmo tempo.

No caso do golpe da passagem, que é muito menos hostil do que as demais versões, um fato acontecido há alguns meses me deixa até hoje encafifado. Contribuí com uma pessoa que me parecia mesmo necessitada, mas depois fiquei em dúvida, pois considerei que ela dispunha de algo muito valioso para estar solicitando meu auxílio.

Tratava-se de um senhor, próximo dos 50 anos, que me abordou na mesma estação Carioca pedindo um bilhete para ir ao subúrbio. Queria buscar documentos que teria de apresentar a um possível empregador. Eu argumentei que ele era o primeiro que pedia ajuda para ir a algum lugar e não para voltar.

Em resposta, o homem disse que minha pergunta não fazia sentido, posto que todos viemos do nada e para o nada voltaremos. A origem e o destino não teriam importância diante da urgência de viver.

Engoli em seco e lhe dei mais que o suficiente para um bilhete duplo, o que ele agradeceu muito.

Continuei meu caminho e não vi se ele comprou a passagem. Não era necessário.


PS-Os leitores e o cronista merecem descansar neste final de ano. Essa coluna só volta a ser publicada na segunda semana de janeiro. Feliz 2004.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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