Pensata

Antonio Carlos de Faria

09/01/2004

A deusa do Réveillon

Quem já passou um Réveillon em Copacabana conhece o ritual de caminhar com os entes queridos até o lugar que supostamente seria o ideal para esperar os fogos de artifício. No exato momento em que você está fazendo isso, cerca de dois milhões de pessoas fazem o mesmo a seu lado e todos esperam achar um ponto melhor que o seu.

Com sorte, no momento da passagem de ano você já terá encontrado esse local mágico e, surpresa, tomará um banho de champanhe. Sem sorte, será de sidra mesmo.

Dizem que esse banho ritual é bom para começar o ano novo com a alma lavada. É claro que quem diz isso nunca usou lentes de contato e portanto não sabe como elas potencializam os efeitos de mínimas gotinhas de álcool.

E, sinceramente, a dor não será menor se o banho for de uma autêntica Cristal. Nesse caso, só há que lamentar, além da dor, o desperdício.

Ter os olhos ardendo em chamas no instante em que os fogos começam a explodir nos céus de Copacabana é uma experiência tremendamente solitária, apesar dos dois milhões de espectadores ao redor. Ninguém presta atenção a seus gemidos.

Todos desconsideram a vítima e olham para o céu, deslumbrando-se com o espetáculo. É preciso deixar a tática dos gemidos e passar para os berros, caso você realmente queira algum socorro.

Aí a coisa engrossa para o seu lado, pois a insistência em disputar lugar de destaque ao lado do maior Réveillon do mundo vai parecer para alguns uma incomensurável mania de grandeza.

No lugar de arranjar um pouco de água para que você lave os olhos, alguém pode até sugerir que seu caso merece alguns anos de psicanálise.

Felizmente há sempre uma mulher com espírito maternal por perto e que entende o seu choro lancinante. É ela quem vai despejar vagarosamente um pouco de água mineral em seus olhos vermelhos.

Nesse instante, você finalmente consegue enxergar algo no meio de uma névoa sanguínea e deduzirá que são as últimas cintilações dos fogos. Pouco a pouco também vai ver a cara de pouco caso dos amigos, ainda inconformados por você ter empanado o brilho da festa.

Por fim, você sentirá alguém bufando ao seu lado e descobrirá que aquela figura transtornada é a sua mulher. Talvez, para amenizar o clima, você procure beijá-la e agradecê-la pelos cuidados. Só pode ter sido ela, posto que sua mãe não estava presente na festa.

Nesse instante sua visão já estará quase totalmente recuperada a ponto de ser possível notar a poucos passos uma morena toda sorridente, incrivelmente bonita em seu vestido branco. Nas mãos dessa deusa calipígia está ainda a garrafinha de água que ela usou para restaurar o seu bem estar.

Você retribui o sorriso, mas não há tempo para render-lhe as graças pelo milagre alcançado. Sua tribo já levantou as âncoras em direção a uma das festas da avenida Atlântica. Além disso, sua mulher, como uma guia de cegos, te pega pelas mãos e sai te arrastando por entre a multidão.

Só dá para olhar para a morena e dizer obrigado, feliz 2004. É bom começar o ano sendo assim tão sincero e grato.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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