Pensata

Antonio Carlos de Faria

16/01/2004

Uma noite paulista em Casablanca

O amigo Roberto Gazzi, recém-chegado de uma viagem ao Marrocos, relata que Casablanca é uma cidade arquitetonicamente parecida com São Paulo, tecida por edifícios modernos e avenidas congestionadas. Ele vagou por quilômetros e não viu uma única odalisca.

A descrição reaviva memórias indefinidas. Provavelmente vestígios da Casablanca ficcional, cuja representação de lugar exótico e mágico foi fixada pelo filme clássico de 1942. Mas também podem ser fruto de uma impressão mais próxima, quem sabe de uma fantasia.

Parece que havia, não estou bem certo, um enigmático retrato de Humphrey Bogart numa das paredes do Bar do Zé, na rua Maria Antônia --o nome mais belo entre as ruas de São Paulo.

O retrato inevitavelmente fazia pensar nas razões insondáveis que um homem teria para rejeitar Ingrid Bergman no auge de sua beleza --o final controvertido do filme que levantou para sempre suspeitas sobre o herói vivido por Bogart.

Especulações que de alguma forma traziam um clima noir para as noites passadas no Bar do Zé, tão distantes das noites do Rick´s, o cabaré em que tudo acontecia na Casablanca cinematográfica.

Era uma pena não haver no Bar do Zé um pianista para pedirmos play it again, caso ocorresse um lapso no tempo e espaço e de repente Ingrid Bergman adentrasse com seu olhar meio perdido, à procura de alguém.

Ela nunca chegou e outros personagens se incumbiram de dar vida ao botequim da Maria Antônia. Entre eles, o revolucionário de balcão, o publicitário à beira da genialidade, o jornalista clarividente, a balzaquiana amarga e bela, o estudante que queria ser cronista e o próprio Zé, que sempre amável descontava nossos cheques, numa época em que não existiam ainda os caixas-eletrônicos.

Nunca perguntei ao Zé o motivo de aquele retrato estar ali. Simplesmente o aceitava, como se fosse um complemento da cerveja gelada e dos sanduíches.

Passados tantos anos sem ter voltado ao botequim, chego a desconfiar se a tal foto teria mesmo existido.

Acredito que foi Graham Greene quem escreveu que uma cidade, por maior que seja, não passará de algumas ruas e outras escassas referências no inventário sentimental de um homem.

Assim, São Paulo é um pouco o Bar do Zé, a rua Maria Antônia, e essa doce saudade que permite associar uma foto, possivelmente imaginária, à descrição que um amigo fez de Casablanca.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca