Pensata

Antonio Carlos de Faria

14/02/2004

Quando Ela chama

Ele sentiu o celular vibrando, mas estranhou o toque da campainha. Não, nunca selecionaria a introdução da Quinta Sinfonia de Beethoven, que lhe soava como algo soturno, de mau agouro.

Seu primeiro impulso foi não atender. Aquilo só podia ser um problema de mau funcionamento do aparelho.

Ao checar o número da chamada, viu que nada estava registrado no mostrador. Isso pareceu confirmar suas suspeitas de que se tratava de uma falha do celular. Mas o bicho não parava de repetir o toque sinistro, cada vez num volume mais alto.

Com um certo mal-estar, resolveu atender.

-Alô.
-É o Cláudio quem está falando?

Ouviu uma voz sensual, de mulher madura. Ficou logo assanhado.

-Sim, é o Cláudio... Sabia que a sua voz é muito sexy?
-Ora, você é o primeiro que me diz isso. Pena que será a última vez.
-Como assim, quem está falando? Princesa, que brincadeira é essa?
-Cláudio, não sou nenhuma princesa. Sou a Morte.
-Morte? Só me faltava essa, não sou chegado em magrelas. Além disso, eu sempre soube que a Morte vem toda de preto, carregando uma foice na mão...
-Isso não é mais fashion, Cláudio. Hoje, tenho que utilizar recursos da moderna tecnologia, senão acabo desempregada. Você sabe como é difícil arranjar outro emprego...
-Princesa, vamos falar sério. Desde os tempos do finado Sig, sabemos que a morte não existe, ela é o desejo pelo que não há. O que existe é a cadaverização do corpo. Entende?
-Cláudio, Cláudio, você fala em desejo e nós dois sabemos o quanto você tem me desejado...
-Sai pra lá. Nunca desejei a morte!
-Ora, então o que me diz de ontem à noite quando você comeu aquele filé à parmegiana?
-Mas um filezinho não faz mal...
-Não faz para quem se cuida. Você não está nem aí e come tudo o que não deve... Além disso, você não faz nenhum exercício...
-Faço sim, claro que faço!
-Cláudio, sexo de vez em quando, caminhar quando não chove aos domingos, é muito pouco, não contam na minha contabilidade. Se você quisesse mesmo viver, teria mais empenho. Agora é tarde.
-Por que tarde? Quando é que eu vou morrer?
-Quando nossa conversar acabar.
-Então eu continuarei vivo enquanto mantiver esse bate-papo?
-Isso mesmo. Mas tem que ser uma conversa interessante. Já vou adiantando que eu não suporto futebol, política e economia.
-Princesa, você já ouviu o último disco do Kenny G?
-Cláudio, você realmente não tem amor à vida.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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