Pensata

Antonio Carlos de Faria

28/02/2004

Retiro de Carnaval

O Alfredinho já havia saído de quase tudo no Carnaval. De drag queen na banda de Ipanema a empurrador de alegoria no Salgueiro. Daí, quando apareceu o convite para o retiro espiritual, apenas perguntou se poderia levar sua cuíca.

Era um recurso a ser usado em caso de risco extremo, justificou. Ao mesmo tempo prometeu respeitar as altas vibrações do retiro, que seria realizado nas montanhas de Lumiar.

Os organizadores do isolamento esotérico concordaram com a cuíca, desde que ele não se esquecesse de dois itens essenciais: arroz integral e incenso indiano.

Na verdade, precisavam do Alfredinho, que era encarado como uma missão. Tinham a esperança de poder convertê-lo, trazê-lo para o caminho correto. Se conseguissem, teriam a certeza de salvar qualquer alma. Tratava-se de uma provação.

E foi, a começar pelo enguiço no jipe a uns 10 quilômetros do destino final, sob chuva intensa. Não houve jeito de consertar o carro e todos tiveram que por o pé na lama, carregados de mochilas.

Os mais experientes lembraram que sofrer é uma espécie de lixa de polimento para o espírito. Depois daquilo, todos estariam com a aura mais brilhante.

O Alfredinho objetou que por enquanto estavam incrivelmente sujos, pois a trilha tinha a consistência de um guacamole. Pena que não tivessem trazido tequila.

O líder do grupo, que dizia conhecer a região desde criancinha, logo mostrou suas qualidades de guia ao se paralisar diante de uma bifurcação. Só saiu da apoplexia, quando foi sacudido pelos outros peregrinos.

Fraternalmente, resolveram dividir o grupo em dois. Quem chegasse primeiro ao sítio mandaria um representante de volta para orientar os demais.

O Alfredinho se solidarizou com o líder cabisbaixo, dizendo que também andara perdido, mas agora se encontrara.

Diante de olhos marejados, fez questão de ser o terceiro elemento no subgrupo que se completava com mais duas mulheres. Partiram para a marcha.

Depois de dez minutos, o Alfredinho sugeriu uma pausa, pois precisavam tomar alguma coisa para se aquecer, afinal o friozinho da montanha já se fazia sentir.

As moças não acreditaram quando o viram retirar a garrafa de tequila da mochila. Um homem prevenido vale para duas, asseverou, enquanto servia suas acompanhantes de infortúnio.

De gole em gole, chegaram rastejando a uma casa que pela descrição era o abrigo almejado. Sentiram-se mais confortados ao tomar uma ducha e retirar a lama. Depois, nada melhor do que acender a lareira e queimar o incenso indiano.

Alguém se lembrou de também fazer arroz integral. O frio aumentava e o Alfredinho foi elogiado pela prudência de ter outras garrafas na bagagem.

Passadas algumas horas, uma das moças fez menção de que parte dos irmãos ainda esperava ser resgatada. Ele sentiu que haviam chegado a um momento de risco. Sem vacilar, abriu a mochila e pegou a cuíca.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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