Pensata

Antonio Carlos de Faria

06/03/2004

A musa imperfeita

A bandinha esganiça um samba na avenida Rio Branco e logo se forma uma aglomeração para ver a evolução de mulatas que mais parecem deusas calipígias.

Trata-se de uma homenagem ao aniversário do Rio de Janeiro e não fosse pelos músicos sofríveis teria tudo para ser um espetáculo perfeito. Por isso mesmo é uma obra-prima, um hiato de transcendência no meio da agitação da grande cidade.

Isso já foi dito antes por autores iluminados e vale repetir. A obra-prima é necessariamente imperfeita. Sabe-se, de Freud a Nelson Rodrigues, que é pelas imperfeições, pelos buracos que se pode penetrar no textu --ao mesmo tempo texto e tecido.

O que nos identifica e nos emociona diante da obra humana não são os preciosismos do domínio técnico, mas justamente as falhas que lhe subsistem e ultrapassam.

Olhando bem, até mesmo o Davi de Michelangelo é imperfeito, mesmo que nos humilhe com tanta perfeição. Ora, a gigantesca representação da figura de um homem, esculpida em mármore para a eternidade é em tudo errada diante da natureza humana, frágil e transitória. E por ser tão incorreta é absolutamente genial, infundindo para sempre o espírito da Renascença.

Mas a bandinha continua a tocar e agora atacam de "Aquarela do Brasil", obra-prima de Ary Barroso, que os críticos se apressam em denunciar como ufanista, emblemática do Estado Novo, de poesia capenga. Tão cheia de falhas e por isso mesmo tão amada, capaz de umedecer os olhos de um brasileiro em qualquer parte do mundo.

Com os olhos úmidos fica mais difícil enxergar, mas é impossível não ver, a foto de Luma de Oliveira pendurada na banca de revistas ao lado da bandinha.

Não é aquela fotografia em que ela aparece como ícone da sensualidade feminina, na qual o esplendor de sua beleza refulge de tal forma que nem percebemos sua nudez.

Falo de outra imagem, em que Luma está com o olhar meio perdido, sentada, na placidez de um jardim, como se estivesse pensando nas fofocas que ela mesma gerou recentemente sobre sua vida. Essa coisa de falsa gravidez e de separação do marido, tudo tendo como pano de fundo o Carnaval. Um roteiro perfeito sobre a vida mundana carioca.

Tão perfeito que expõe as imperfeições da musa e ao fazer isso a torna mais humana, mais mulher. Como a comprovar outra vez que a obra-prima tem que ser necessariamente imperfeita.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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