Pensata

Antonio Carlos de Faria

13/03/2004

É o lobo

Início de noite no Villarino e as fotos nos jornais chocavam o grupo de amigos. A comoção pelos atentados na Espanha foi seguida por declarações de ódio aos terroristas. Nesse instante, o Chico resolveu trazer o terror à mesa do bar carioca.

-Todo homem é um criminoso em potencial, asseverou causando alvoroço. Os amigos, acostumados às bravatas do rapaz, quiseram demovê-lo da generalização, mas ele foi insistente.

- Todo ser humano é capaz de crueldades, atos de barbárie. A fera em nós não se detém apenas pela coação externa. A única coisa que pode impedir o fim da civilização é a polícia que vive em cada um, a chamada consciência. Só que os fundamentos estão corroídos. É preciso refundar a autocensura sobre novas bases.

Aquilo não podia ficar por isso mesmo. Os outros protestaram que o Chico estava partindo para a ignorância. Se ele tinha tanta certeza do que dizia, que desse exemplos.

- Amigos, até garotos são monstros quando não dispõem desse controle interno. Vejam as quadrilhas armadas de traficantes ou as gangues de lutadores. Alguns mal deixaram de ser meninos e já estão envolvidos na selvageria.

Alguém na mesa concordou que a agressividade não é uma característica que exime os jovens, mas objetou que as condições sociais são o combustível para movimentar a violência. As coisas pioram quando falta o amparo ou a educação.

- Não seja besta, rebateu Chico. O mal reside em todos, e a condição social pouco tem a ver com seu florescer. Basta lembrar dos rapazes de Brasília que incendiaram o índio pataxó. Todos bem-nascidos. Tiveram inclusive educação, só que composta por valores que não constroem mais uma consciência que domine os homens.

Outro dos confrades suspirou e disse que o problema era justamente o fato de o mundo ter perdido os antigos valores. Os homens das velhas gerações é que sabiam das coisas.

- Quanta asneira, contestou Chico. Os velhos são tão capazes de barbaridades quanto os jovens. Quem são os homens que determinam os atentados e as guerras?

Pombas. Então não há saída, protestou alguém na mesa. Do jeito que você vê a vida, não há possibilidade de paz. Estamos condenados a viver num faroeste, num pega-pra-capar generalizado.

- Não seja estúpido, refutou Chico. É claro que há saída. Temos que construir a autocensura sobre alicerces em que acreditemos. Por exemplo, podemos respeitar a vida porque é um absurdo lógico. Não faz nenhum sentido estarmos aqui, tomando essa cervejinha, jogando conversa fora. Não deveríamos existir, mas estamos aqui. Toda vida é um relâmpago na escuridão eterna. Brilha só alguns segundos. Antes só havia trevas e depois é só o que restará.

Os amigos o olharam com espanto. A conversa no Villarino havia enveredado por caminhos obscuros. O rapaz percebeu o constrangimento.

- Vamos celebrar que nossas vidas estão coincidindo no mesmo segundo da eternidade. Comunguemos nossa desgraça, propôs Chico, erguendo um brinde.

Todos levantaram os copos e há quem jure que aquele velho bar transbordou de luz. O Chico acredita nisso, afinal foi ele que disparou o flash da câmera fotográfica.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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