Pensata

Antonio Carlos de Faria

17/04/2004

Premonições cariocas

O Rio de Janeiro segue cumprindo seu martírio, sem que os cariocas e demais brasileiros aproveitem as lições desse sacrifício. Ainda há pouca compreensão sobre o papel precursor que as delícias e as desgraças locais exercem em relação ao país.

A capacidade carioca de estar sempre um passo à frente --para o bem e para o mal-- parece ter raízes históricas. Entre as profundas e propícias, o fato de o Rio ter sido a única cidade fora da Europa a ser sede de um império europeu. Entre as intermediárias e nefastas, a transferência da capital federal sem um programa de compensações.

Talvez esse tenha sido o primeiro passo que levou o Rio a um movimento de desarticulação econômica e política já nos anos 60, muito antes das crises freqüentes que fizeram o país parar de crescer a partir dos anos 80.

Nessa década, quando as primeiras quadrilhas de traficantes começaram a atuar no Rio, a importância do fenômeno foi minimizada. Para muitos, não passava de mais um modismo passageiro --como foram os biquínis asa-delta e o fio dental. A moda iniciada por aqui mostrou que tinha terreno para se consolidar em outros lugares. Hoje, qualquer recanto brasileiro tem o seu capo das drogas.

Da mesma forma, o atual estágio da violência carioca também irá se expandir pelo país, caso nada seja feito para se tomar consciência do processo e buscar soluções eficazes.

Há 20 anos, a expansão dos bandos de criminosos no Rio foi concomitante aos efeitos do esvaziamento econômico seqüente a um expressivo crescimento demográfico.

Nesse caldo, os guetos transbordaram de gente, o mercado de trabalho secou e o tráfico se tornou um grande empregador. Como pitada fundamental, os governos pós-período militar abdicaram da autoridade, que foi confundida com autoritarismo.

Para a receita ficar completa, adicione-se o aumento da produção e a queda de preço da cocaína nos países produtores, com os quais temos fronteiras extensas e sem vigilância.

Eis o prato originalmente carioca e hoje tão brasileiro. Não faz sentido pensar que governos municipais ou estaduais isolados possam dar conta do recado.

Tráfico é questão federal, problema nacional com implicações internacionais. Sua abordagem exige ações de médio e longo prazo. A mais óbvia remete ao imperativo de que o país tem que voltar a crescer, recuperando a capacidade de absorver sua população em relações de civilidade.

É claro que não dá para esperar isso acontecer. É preciso ações imediatas e, talvez, o mais eficiente fosse escolher um inimigo principal, o tráfico de armas, para concentrar inteligência e forças em seu combate.

Sem seu armamento cada vez mais sofisticado, em pouco tempo a ameaça do tráfico ficaria reduzida quase que a uma questão de saúde pública.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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