Pensata

Antonio Carlos de Faria

24/04/2004

O vizinho do lado

Moro no mesmo lugar há algum tempo e desde o início notei que regularmente encontrava meu vizinho na garagem do prédio. Sempre em movimento, chegávamos ou saíamos repetindo expressões cordiais. Uma vez comentei com o senhor David essa roda-viva e, em resposta, convidou-me a visitá-lo, para um café.

No Rio, convites desse tipo são apenas manifestações de gentileza e ninguém espera que realmente o convidado apareça. O meu vizinho sabia disso e advertiu que estava falando sério, pois como morador mais antigo se sentia no dever de dar boas vindas ao recém-chegado.

- O senhor toma o café e eu tenho a chance de contar velhas histórias. Talvez assim elas consigam durar mais que o próprio autor.

Para mostrar que seu acervo era valioso, revelou que foi um dos construtores do prédio, em 1960. Na época, ele tinha pouco mais de 40 anos.

Fiquei surpreso ao calcular que o senhor David já passara dos 80. Aparentava menos e sempre irradiava boa disposição. Dirigia seu carro com grande habilidade e freqüentemente eu o via caminhando pelas calçadas de Copacabana, exibindo sinais de vigor.

Ele sorriu diante de minha incredulidade. Com o conhecido humor de seus antepassados --capazes do saudável hábito do auto-escárnio--, disse que eu não deveria me enganar pelas aparências e com isso demorar demais em ir visitá-lo. Para certas coisas, estamos sempre atrasados, considerou.

Motivos variados, viagens, excesso de trabalho e, sobretudo, uma urbanidade recatada, de alguma forma impediram que a tal visita fosse feita.

Porém em novos encontros involuntários, fiquei sabendo de mais detalhes sobre a história do prédio, edificado no final do governo JK. Daí os traços inspirados em Brasília, irradiando um otimismo extemporâneo.

Percebi que a construção era motivo de orgulho, obra que havia realizado para que algo pessoal pudesse permanecer. Talvez como as histórias que ele queria contar.

O construtor tinha particular carinho pelo conjunto de elevadores, com portas pantográficas, cujos motores e partes mecânicas ainda são originais.

- Funcionam como o coração humano --comparava o senhor David--, pois trabalham constantemente e ninguém gosta quando falham.

Na última semana, notei que o carro do meu vizinho permanecia estacionado na mesma posição. Já não o encontrava ao entrar e sair da garagem. Pressenti que a visita adiada não seria mais possível.

O pressentimento foi confirmado pelo porteiro do prédio, que me relatou o fato acontecido há alguns dias. Para certas coisas, estamos sempre atrasados.

O senhor David queria que suas histórias permanecessem depois de sua passagem, mas se isso acontecesse não seriam mais suas. Parece que as histórias são sempre de quem as lê e não de quem elas tratam.

Mesmo sabendo ser impossível o desejo da permanência, pelo menos por hoje uma história de meu vizinho segue firmada por esta crônica.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

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