Pensata

Antonio Carlos de Faria

01/05/2004

A fábula do sonhador

Há dois meses ele sonhou pela primeira vez com aquela bela mulher que aparecia deslumbrantemente nua nas areias de Ipanema. Diante da cena que se repetiu por várias noites, o sonhador não fazia nada.

Apenas recomendava que ela vestisse algo, pois os outros poderiam estar olhando.

Quando acordava, sentia-se fascinado pelo objeto onírico. Tentava reconhecer em outras mulheres aquela que só encontrava durante o sono. Até a procurou na praia, onde de fato havia belezas abundantes, mas por mais lindas que fossem, nenhuma chegava a ser tão bela e nua.

O sonho tinha sempre a mesma forma e ele se recriminava por sua timidez recorrente. Durante a vigília, até pouco antes de dormir, ensaiava conversas que nunca conseguia desenvolver ao encontrar a musa.

No mínimo, desejava protegê-la com um abraço. Se o princípio fosse promissor e o desenrolar viesse com êxito, ao final terminariam compartilhando um Chicabon.

O significado do sonho era claro: até dormindo ele se preocupava com a opinião alheia, não deixava fluir o que julgava ter de melhor. Foi essa a sua confissão, no dia em que a turma se encontrou para o chope semanal.

Um dos amigos perguntou com quem ela se parecia. Ele descreveu uma composição entre a Luma e a Scheila Carvalho. A reação veio em um respeitoso silêncio. Cada um idealizou a sua própria visão dessa mistura diabólica.

Ele comunicou sua decisão. Iria ser mais ousado, não daria mais bola para o que os outros dissessem. Os amigos aplaudiram e para comemorar pediram mais uma rodada.

Como prova de que estava falando sério, ele mostrou um calhamaço. Eram as suas poesias. Os amigos fiéis teriam a honra imediata de uma leitura pelo próprio autor, apesar do pânico que percorreu a mesa.

A partir desse ponto, a fábula tem três finais sugeridos. O leitor também pode compor o seu e as contribuições serão muito bem-vindas.

Na primeira versão, a bela mulher não mais o visitou depois que ele se expôs publicamente. Ele interpretou o sumiço da musa como uma libertação mútua.

O poeta constatou que ao se sentir satisfeito deixava de sonhar. Angustiado, desejou que isso fosse temporário.

Em outra proposta para conclusão da fábula, o poeta, depois de se dar ao público, consegue dominar o próprio sonho. Quando novamente encontra a musa, ele também tira a roupa. Ela não gosta do que vê e foge na paisagem de Ipanema.

Ao acordar, o poeta compreende que a musa adora andar nua, mas aprecia que ele se apresente com rigor.

Por fim, no último final sugerido, quando o poeta anuncia aos amigos a leitura das poesias, começa uma lenta debandada até que só restem ele e o garçom no canto do bar.

O poeta conclui que é mais fácil sonhar com uma musa nua do que conseguir público para poesia.
Antonio Carlos de Faria é jornalista e vive no Rio de Janeiro. Escreve para a Folha Online às quintas

E-mail: acafaria@uol.com.br

Leia as colunas anteriores

//-->

FolhaShop

Digite produto
ou marca